Estudos sobre ayahuasca projetam USP como referência em pesquisas sobre alucinógenos

Fotografia, em vista superior, mostra uma panela de ferro cheia de cipó-mariri e folhas de chacrona, para preparação de ayahuasca. Imagem: Amazônia Real.

Universidade lista entre as instituições que mais produzem, no mundo, conhecimento sobre chá difundido por indígenas da América do Sul; potenciais tratamentos contra depressão e ansiedade estão no foco dos pesquisadores. As informações são do G1

Rafael Guimarães dos Santos, Jaime Hallak, José Crippa, Flávia Osório e Rafa Sanches estão entre os brasileiros hoje apontados por motores de busca especializados entre os principais pesquisadores do mundo focados em entender propriedades terapêuticas de substâncias alucinógenas.

Mais que o país de origem, esses cientistas compartilham a Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto (SP), como local de trabalho, com pesquisas que tornaram a instituição uma referência internacional nos estudos sobre a ayahuasca — chá de origem indígena usado em diferentes manifestações religiosas na América do Sul —, e sobre o potencial dela contra transtornos como depressão e ansiedade.

Os resultados, de uma maneira geral, ainda não são conclusivos, mas podem trazer novas soluções no âmbito da psiquiatria.

As medicações disponíveis geralmente precisam ser tomadas diariamente por semanas para começar a produzir seus efeitos. Se você tem uma substância que pode produzir os efeitos de forma mais rápida aos terapêuticos, isso pode ter uma utilidade clínica bem importante. Entretanto, nenhuma dessas substâncias está aprovada”, explica Santos, professor do programa de pós-graduação em saúde mental da USP e considerado o principal pesquisador de ayahuasca do país.

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Chá de ayahuasca mobiliza estudos na USP de Ribeirão Preto. Foto: Giordano Novak Rossi.

Ayahuasca: o que é

A ayahuasca é uma bebida indígena natural utilizada de forma ritualística em países da América do Sul como Brasil, Colômbia, Peru e Equador.

De origem quéchua, língua de povos nativos em países como o Peru, o nome vem da junção de aya, que significa “espírito”, e huasca, que se refere a cipó.

Feito da infusão de plantas amazônicas — o cipó-mariri (Banisteriopsis caapi) e folhas da árvore chacrona (Psicotria viridis) —, o chá, que libera substâncias psicoativas como a dimetiltriptamina, ou DMT, é conhecido por proporcionar alterações no estado de consciência e associado a experiências espirituais únicas, segundo relatos de quem o utiliza.

“A gente poderia dizer que é um paralelo com o estar sonhando, mas consciente”, afirma Rafael Guimarães dos Santos.

Por esse motivo, só pode ser consumido de maneira controlada, com acompanhamento, e exclusivamente para fins religiosos, segundo uma resolução de 2010 do Conselho Nacional de Drogas.

A mesma publicação também estabelece que haja experimentos científicos sobre o uso terapêutico do chá, e coíbe o uso do chá com outras drogas e para fins recreativos.

No Brasil, a bebida também é conhecida como chá do Santo Daime, manifestação religiosa fundada no Acre no início do século 20 por Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, que acabou difundida ao longo das décadas em outras denominações, como a União do Vegetal, e o Lar de Frei Manuel, a Barquinha, de Ji-Paraná, em Rondônia.

“[A ayahuasca] é uma ferramenta para a amplitude espiritual, para a visão da pessoa”, afirma Edilsom Fernandes da Silva, presidente da Barquinha.

Fundado em 1989, o centro espiritual chegou a ter, antes da pandemia, em torno de 150 frequentadores, para reuniões semanais. Nelas, segundo Silva, o chá é introduzido de maneira gradativa aos participantes, com monitoramento dos efeitos. Além disso, quem frequenta o local precisa passa por uma avaliação prévia sobre as condições mentais e físicas.

“Administra-se a ayahuasca, pela primeira vez, sempre pouco, só para a pessoa se ambientar. À medida que ela vai frequentando, as outras vezes a gente vai aumentando a dose em conformidade com a reação dela. Se ela teve uma reação tranquila, um bem-estar, ela permanece ali. Se ela quiser se aprofundar um pouco mais, a gente dá um pouquinho mais, mas com cuidado e observando as reações para que ela não surte, não tenha um problema mental ou psicológico”, explica.

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Produção do chá de ayahuasca em igreja em São Paulo; Brasil está à frente de estudos sobre potencial médico da bebida — Foto: Reprodução/Fabio Flecha/BBC

Produção do chá de ayahuasca em igreja em São Paulo; Brasil está à frente de estudos sobre potencial médico da bebida. Foto: Fabio Flecha / BBC.

Os primeiros estudos

Os primeiros estudos sobre a ayahuasca datam dos anos 1990 por meio de iniciativas de pesquisadores estrangeiros e brasileiros, entre eles o Projeto Hoasca, realizado entre 1991 e 1996 no Acre, que avaliou os efeitos a longo prazo do chá em seres humanos.

Uma abordagem inicial sugeriu, por meio da observação, que a substância pode ser segura, se usada corretamente, além de ter efeitos terapêuticos.

“A gente não podia estabelecer causalidade porque era um estudo observacional, mas parecia ser segura e parecia ter alguns indícios terapêuticos. As pessoas relataram, por exemplo, melhoras de quadros de ansiedade, depressão e abuso de drogas”, diz Santos.

Ainda nos anos 1990, as pesquisas sobre a ayahuasca colocaram em evidência nomes como o neurocientista espanhol Jordi Riba, que aprofundou as análises sobre as interações do chá e lidera um dos grupos de estudos mais importantes sobre o assunto.

No Brasil, há também importantes grupos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus (BA), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além da USP.

Fornecedor do chá para algumas dessas universidades, Silva, de Ji-Paraná, percebeu um aumento no interesse científico pela bebida, principalmente por conta dos relatos de quem já frequentou os rituais.

“Aumentou o interesse científico por que é comprovadamente uma transformação do ser humano. A pessoa que bebe a ayahuasca com frequência, isso leva a uma certa conduta”, afirma.

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Rafael Guimarães dos Santos, da USP de Ribeirão Preto (SP), é um dos maiores pesquisadores de alucinógenos do mundo — Foto: Divulgação

Rafael Guimarães dos Santos, da USP de Ribeirão Preto (SP), é um dos maiores pesquisadores de alucinógenos do mundo. Foto: divulgação.

USP: referência internacional

Entre os diferentes centros de estudo do Brasil, a USP é listada como a que mais produz conhecimento sobre a dimetiltriptamina e a Banisteriopsis caapi, principais substâncias do chá do Santo Daime, segundo a Expertscape, plataforma que contabiliza artigos publicados na PubMed, o principal motor de buscas do mundo na área biomédica.

A universidade supera instituições dos Estados Unidos, como a Universidade Johns Hopkins, a Universidade de Debrecen, na Hungria, além de centros de estudos em Londres e Barcelona.

Em meio aos cientistas, o professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Mental da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/USP), Rafael Guimarães dos Santos, é considerado o de maior produção, com ao menos 60 publicações sobre a ayahuasca.

Formado em biologia, Santos é mestre em psicologia pela Universidade de Brasília e doutor em farmacologia pela Universidade Autònoma de Barcelona, além de pós-doutorado em Neurociências pela USP em Ribeirão Preto.

Hoje, grande parte dos estudos é conduzida dentro do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, com destaque para parcerias com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e avalia os efeitos terapêuticos da ayahuasca contra a depressão, ansiedade social e uso abusivo do álcool.

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Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto — Foto: EPTV/Reprodução

Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto. Foto: EPTV / reprodução.

Potencial terapêutico

Entre os principais artigos já publicados sobre a ayahuasca pela USP, já existem resultados promissores para o tratamento contra a depressão.

Em 2019, em um primeiro estudo realizado com 17 voluntários no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto e depois ampliado para mais 29 voluntários, com uso de placebo, observou-se uma redução em sintomas depressivos nas primeiras horas de aplicação, com um efeito que se estendeu por 21 dias.

“Depois os sintomas retornaram, mas até aquele momento somente a cetamina [contida em medicação usada contra casos de depressão resistente] tinha produzido resultados similares”, diz Santos.

O experimento foi feito em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande Norte e foi publicado na revista britânica “Psychological Medicine”. A próxima etapa é estabelecer uma comparação entre a ayahuasca e a cetamina.

Um ensaio publicado em setembro deste ano no Journal of Clinical Psychopharmacology, sob coordenação do professor e psiquiatra Jaime Eduardo Cecilio Hallak, também apontou que a ayahuasca tem potencial em auxiliar pessoas com ansiedade social. Entre os 17 voluntários participantes, houve relatos de uma melhor percepção com relação a aspectos como a fala e o canto.

De acordo com os pesquisadores, novos estudos devem desvendar os mecanismos envolvidos nos efeitos da ayahuasca e compreender melhor sua atuação contra a ansiedade.

“A gente mostrou que, com uma dose de ayahuasca, cinco horas depois, os principais efeitos já tinham sido reduzidos. Esses voluntários relataram melhora da autopercepção durante um teste que gera estresse, uma simulação de falar em público. Uma coisa interessante é que melhorou de certa forma a parte cognitiva dessas pessoas”, observa Santos.

Na USP também estão em andamento estudos sobre a aplicação da ayahuasca em pessoas com uso abusivo de álcool e outras drogas. A pesquisa tenta evidenciar relatos positivos prévios de quem frequenta rituais religiosos com uso do chá do Santo Daime.

“Existe já essa observação de que nesses lugares as pessoas relatam redução do uso de drogas, principalmente álcool, cocaína, tabaco e outros. A gente vai dar uma dose de ayahuasca ou placebo nesse estudo duplo-cego e randomizado”, explica.

Os efeitos adversos, nesse contexto, foram raros e controlados, segundo Santos. “A gente observou duas situações em que a gente teve que atuar mais para a pessoa se acalmar, mas mesmo assim sem uso de medicação”.

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Preparo do chá da ayahuasca — Foto: Janine Brasil/G1

Preparo do chá da ayahuasca. Foto: Janine Brasil / G1.

Cuidados e critérios

Segundo Rafael dos Santos, todos os estudos hoje realizados na USP avaliam os efeitos do chá de ayahuasca produzido naturalmente em centros religiosos de Ribeirão Preto e Rondônia.

“A ayahuasca é administrada da forma oral tal qual é usada nos rituais. A gente faz isso por vários motivos. Primeiro, por que é o que a resolução do Conselho Nacional sobre Drogas permite, estimula o uso ritual em sua forma oral, com o cipó e com a folha”.

Na Barquinha de Ji-Paraná, um dos locais que fornecem o chá para as pesquisas na USP, 40 litros da bebida levam em média dois dias para serem produzidos em um processo que segue determinadas regras para se adequar a questões religiosas, como a escolha da quantidade de cipós e as áreas de onde são extraídas as plantas.

“A gente tem o maior controle sobre a concentração dele, porque cada cipó em uma determinada área, dependendo da lua, do meio, das conjunções astrais, tem um efeito, ele é a natureza. Se você tira de um cipó só e faz [o chá], você sabe que o Daime na quantidade que você fez está em um nível só. Quando você mistura vários cipós e várias folhas de várias áreas diferentes, você não tem um padrão”, diz Silva.

Esses padrões são reforçados por cuidados como uma pesagem mais precisa dos ingredientes, para se adequar às necessidades dos cientistas. “Para a pesquisa eu metrifico tudo, porque tem que corresponder à metodologia científica.”

Segundo Santos, nos estudos os voluntários recebem doses únicas, com uma proporção que varia entre 1 e 2 mililitros por quilo e com níveis seguros de DMT na composição.

“Poderíamos trabalhar com DMT isolado, mas quando trabalhamos com a ayahuasca é a forma que ela é usada tradicionalmente aqui no Brasil”, ressalta.

Embora, de uma maneira geral, não haja indícios de que sejam tóxicas para a parte fisiológica, fora de ambientes controlados e sem acompanhamento de equipes experientes, um consumo inadequado do chá do Santo Daime pode ser prejudicial à saúde mental, alerta o pesquisador da USP.

Nesses casos, reações psicológicas adversas são esperadas, especialmente em pacientes com histórico de transtornos psicóticos e que já se mediquem com antidepressivos.

Ele também ressalta a importância de se consultar um psiquiatra a quem eventualmente tenha interesse em utilizar o chá.

“A pessoa pode ficar ansiosa, assustada, ficar com medo daqueles efeitos que ela pode desconhecer, e pode ter um episódio de pânico e até sintomas psicóticos, ficar paranoica. Isso pode ser perigoso se não é no contexto controlado, por exemplo, em uma festa ou um ambiente aberto sem nenhuma pessoa com a experiência que vai manejar esse tipo de situação, diferente do que a gente faz aqui em Ribeirão Preto”.

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#PraTodosVerem: fotografia, em vista superior, mostra uma panela de ferro cheia de cipó-mariri e folhas de chacrona. Imagem: Amazônia Real.

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