O que é o PL 399/2015?

Imagem mostra um retrato do Dr. Erik Torquato em moldura redonda e fundo branco, o nome da coluna, “Erik Torquato responde”, e, à direita, plantas de maconha.

A Comissão Especial da Câmara dos Deputados está prestes a votar o projeto de lei 399/2015, que regulamenta a maconha com fins terapêuticos e o cânhamo industrial no Brasil. Mas o que, de fato, isso significa? O que propõe o PL 399 e quem se beneficiará desta regulamentação? Por que o cultivo doméstico não está contemplado no projeto? O advogado Erik Torquato explica tudo que você precisa saber sobre o assunto, confira

O que é o PL 399/2015?

O Projeto de Lei 399 de 2015 inicialmente nasceu como uma tentativa de inserir no artigo 2º da lei 11.343/2006, atual lei de drogas, um parágrafo que autorizava a venda de produtos de Cannabis sativa para fins medicinais no território nacional.

No artigo 2º da Lei de Drogas existe uma previsão de autorização que pode ser dada pela União para que seja realizado o plantio de plantas que possam produzir drogas, desde que para fins de pesquisa científica e uso medicinal.

Art. 2º Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.

Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.

 

Na medida que o referido artigo prevê que pode a União autorizar o cultivo para fins medicinais e científico, o PL 399 de 2015 propôs que também fosse autorizado a venda dos produtos medicinais, desde que contassem com comprovação científica de eficácia.

No entanto, a partir de 9 de outubro de 2019, o então presidente da Câmara de Deputados, Rodrigo Maia, determinou que fosse instalada uma comissão parlamentar para analisar o texto original do PL 399 e apresentar um texto substitutivo que regulamentasse o cultivo, produção e venda de maconha para fins medicinais no Brasil.

Desde então, muitas foram as audiências públicas e viagens para países onde existem cultivos medicinais realizadas pela comissão, até que no último dia 11 de maio, o deputado Luciano Ducci (PSB-PR) apresentou um texto substitutivo, prevendo tanto as condições para a indústria farmacêutica produzir medicamentos à base de maconha como as condições para o cultivo da planta desde a finalidade medicinal até a industrial. O relatório prevê também a aplicação da maconha como cosmético, produtos alimentícios e uso veterinário.

Assim, o projeto hoje é tido como um verdadeiro marco regulatório da maconha no Brasil, que se aprovado trará significativas mudanças em como o Brasil lida com a maconha no seu território nacional, transformando-a em uma mercadoria de alta lucratividade para os setores da indústria farmacêutica e agrícola do país.

Quais foram os últimos andamentos da tramitação deste projeto de lei?

No ano de 2015, o deputado federal Fábio Mitidieri (PSD-SE) protocolou o PL 399 prevendo a inclusão da possibilidade de venda de produtos de maconha para fins medicinais. De lá para cá houve inúmeros requerimentos protocolados durante a tramitação do projeto. No entanto, o referido projeto caminhava apensado ao PL 7.187/2014 do deputado Eurico Júnior (PV-RJ), que previa a legalização da maconha visando a descriminalização total da planta. Porém, em 2018, por determinação do presidente da Câmara de Deputados, Rodrigo Maia, o PL 399 foi desapensado para que tramitasse sozinho e no sentido de regulamentar a maconha apenas para fins medicinais e industriais, ficando a questão do uso adulto e da descriminalização de fora das discussões.

No dia 20 de abril, o relator do projeto 399 apresentou seu relatório final, após as inúmeras diligências e audiências públicas realizadas em 2020. Contudo, o relatório prevê uma série de medidas restritivas às associações, fato que gerou grande movimentação do movimento associativo. Após a apresentação do relatório, abriu-se a oportunidade de apresentação de emendas parlamentares durante as cinco sessões subsequentes, com diversas emendas apresentadas neste período por parlamentares favoráveis às associações, bem como contrários ao projeto.

No último dia 11 de maio, o relator apresentou um parecer às emendas que foram apresentadas ao texto que ele tinha proposto anteriormente. Neste último relatório, pouca coisa mudou desde o primeiro texto apresentado pela comissão, mantendo-se as principais questões criticadas tanto por parte daqueles que são contrários à regulamentação da maconha no Brasil, como por parte daqueles que são favoráveis e entendem que o projeto é tímido e não atende às demandas sociais.

No entanto, apesar das críticas de ambas as partes, o relatório está pautado para ser votado no próximo dia 20 de maio, fato que poderá ser definitivo para o futuro deste projeto, apesar de o presidente da república já ter sinalizado que, se eventualmente for aprovada a lei de regulamentação, será vetada. Portanto, teremos ainda muitas novidades ao longo dos próximos acontecimentos na tramitação desse projeto.

Quais serão os principais setores beneficiados a partir das mudanças que o projeto apresenta?

Uma das principais conquistas do PL 399 foi o reconhecimento da função social das associações de pacientes de maconha medicinal. No entanto, apesar do projeto avançar no sentido de reconhecer a importância dessas entidades, no seu texto o reconhecimento ficou apenas na parte de exposição de motivos.

Na verdade, quando analisado os parâmetros de funcionamento estabelecidos no texto do projeto para que as associações possam funcionar, fica nítido que os trabalhos dessas entidades ficaram praticamente inviabilizados tamanha a burocracia estabelecida. Ainda mais quando pensamos em associações de pequeno porte, poucos recursos e formadas por pessoas pobres. Por isso, muito pouco pode ser comemorado em relação ao reconhecimento das associações como setor beneficiado pelo projeto.

Mas como já adiantei, o projeto de lei foi proposto sob um forte lobby de setores poderosos do mercado brasileiro. Seguramente, o setor mais privilegiado dentre todos será a indústria farmacêutica, por ser esta a detentora do monopólio de produção e distribuição de medicamentos.

No entanto, o segundo setor mais beneficiado será o agronegócio, pois com a inclusão da maconha industrial, os latifundiários ganharão mais uma atividade de exploração agrícola, o que demandará investimentos em maquinários, agrotóxicos e novas tecnologias de plantio. Portanto, certamente o setor agropecuário será um dos grandes favorecidos a partir da eventual aprovação do projeto nos moldes em que está sendo apresentado, pois a maconha passará ser mais uma commodity, servindo a já poderosa bancada rural do congresso nacional.

Quais foram as propostas mais defendidas pelos movimentos sociais?

Os movimentos sociais, verdadeiros responsáveis por todos os anos de luta em defesa da regulamentação da maconha no Brasil, defenderam com muita força a necessidade de se descriminalizar a maconha para todos os fins, organizando os pleitos em três eixos básicos: i. a regulamentação do cultivo doméstico; ii. a criação de políticas de reparação histórica pelos anos de proibição que afeta até hoje a população negra, periférica, criminalizada a partir da política de guerra às drogas; e iii. uma política de autonomia associativa para as associações de pacientes.

Na defesa do cultivo doméstico o que foi defendido, na verdade, é a necessidade de ser reconhecido que é direito fundamental de todo cidadão poder cultivar o próprio remédio. Sem esse reconhecimento, todos os cidadãos que optarem por cultivar seu remédio continuarão sendo criminalizados. Daí que a principal crítica ao PL 399 é a manutenção da criminalização da maconha de maneira a manter uma política de guerra às drogas que, na última semana, matou 28 pessoas na chacina do Jacarezinho, no Rio de Janeiro.

A defesa da reparação histórica, além de reconhecer a necessidade de se abandonar a política de guerra às drogas, vê na regulamentação uma possibilidade de se resgatar as vidas perdidas a partir de uma política criminalizante. Tal proposta encontra como referência a regulamentação recentemente aprovada em Nova York, que além de legalizar a venda da maconha, destinou todos os impostos recolhidos para programas sociais de resgate social, prevenção e cuidado para com a população em situação de vulnerabilidade social.

Em relação à autonomia administrativa das associações de pacientes medicinais, o que vem sendo defendido é a liberdade associativa dos pacientes, que nada mais é que a extensão da liberdade individual de cada um poder cultivar o próprio remédio. Isso por que, na medida que a associação é a união de pessoas, sem fins lucrativos, direcionada a dividir tarefas para compartilharem um cultivo feito de maneira associada, estariam na verdade exercendo uma atividade de autodeterminação na produção de remédio caseiro a ser compartilhado entre as pessoas que se associaram para dividir essa tarefa. Porém, o que vem sendo proposto é uma regulação da atividade associativa que, na verdade, procurou equiparar as associações às industrias farmacêuticas e os remédios produzidos pelas associações a medicamentos elaborados em grandes laboratórios. Quando, na verdade, as associações fazem remédios artesanais que são produzidos a partir das práticas de usos ancestrais da planta da maconha, muito diferente do que é feito nos laboratórios.

Com isso, a principal crítica das associações é que se caso o projeto for aprovado tal como apresentado apenas aquelas associações com porte de indústria poderão funcionar, inviabilizando assim o progresso do modelo associativo que vem sendo criado no país.

Como ficará o acesso à cannabis para fins medicinais se o PL for aprovado?

O processo de acesso à maconha para fins medicinais poderá ser feito por diferentes formas: i. por meio de aquisição em farmácias convencionais; ii. por meio de fornecimento gratuito do SUS, com medicamento oriundo de produção das Farmácias Vivas do SUS ou com a aquisição pelo Estado de medicamentos produzidos por grandes laboratórios; e, por fim, iii. aquisição de remédio de associações que conseguirem resistir às rigorosas regras impostas para que elas funcionem.

Apesar das diversas vias, nada garantirá que o acesso será amplo e eficiente. Hoje sabemos que quem depende das farmácias populares está sofrendo com os sucessivos cortes orçamentários impostos pelo Governo. Além disso, nada garante que o medicamento que será vendido nas farmácias será acessível a cidadãos com menor poder aquisitivo. Além disso, pode acontecer de os remédios disponíveis nas associações continuarem sendo insuficientes para atender toda a demanda existente. Sabemos que algumas associações, mesmo se esforçando para atendimento do máximo de pacientes possíveis, não conseguem atender a todos por ser a demanda muito maior que a capacidade de produção e material disponível.

Portanto, sem a previsão de autonomia administrativa das associações e a possibilidade de cultivo doméstico, o acesso universal à maconha para fins terapêuticos continuará sendo um privilégio que nem todos que dela precisam poderão alcançar.

Por que o cultivo doméstico não foi contemplado no projeto?

Um dos principais argumentos para a proibição do cultivo doméstico é que ele facilitaria a circulação da maconha na sociedade. Portanto, a meu ver, é o interesse na reserva de mercado que impossibilitou que o cultivo doméstico fosse contemplado. Até por que, vale lembrar, a comissão especial da Câmara viajou para países onde a maconha foi regulamentada com garantia do cultivo doméstico, inclusive podendo observar impactos positivos nas políticas de repressão ao tráfico ilícito de substâncias, como na Colômbia e Uruguai, por exemplo.

Portanto, a meu ver, não há outro motivo para não reconhecer a viabilidade do cultivo doméstico que o de manter o monopólio da produção e comércio como forma de garantir um mercado consumidor que necessita do remédio para sobreviver nas mãos de uma indústria poderosa e gananciosa, que é a indústria de medicamentos e, é bom que se diga, das organizações criminosas que exploram o tráfico no Brasil.

Vale lembrar que na maioria dos casos em que a maconha é indicada como tratamento, os extratos artesanais apresentam significativas respostas positivas de eficácia e segurança já demonstradas inclusive em experiências de países vizinhos. Ou seja, não há motivos reais para se temer o cultivo em quintais.

O que mudará para quem tem Habeas Corpus para cultivo doméstico se o projeto for aprovado?

O Habeas Corpus para cultivo é a resposta que o Poder Judiciário tem dado à agressão praticada pelo Estado contra a saúde dos brasileiros que, por meio de uma proibição inconstitucional, proíbe os cidadãos de plantarem o próprio remédio. Portanto, considerando que essa proibição continuará existindo mesmo diante de uma regulamentação recente, o direito a cultivar o próprio remédio continuará tendo caráter constitucional e poderá ser pleiteado. Logo, diante da ineficiência da regulamentação, da escassez de oferta de remédios e da certeza da garantia da liberdade individual dos pacientes, certamente os Habeas Corpus continuarão sendo possíveis como via adequada para que os cidadãos se protejam das ameaças de criminalização do Estado quando optarem por exercerem o direito fundamental à vida a partir da prática do cultivo doméstico do próprio remédio. Ou seja, considero que nada muda em relação à possibilidade de buscar socorro jurídico contra a criminalização do usuário que cuida de sua própria saúde.

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#PraCegoVer: imagem de capa mostra um retrato do Dr. Erik Torquato em moldura redonda e fundo branco, o nome da coluna, “Erik Torquato responde”, e, à direita, plantas de maconha.

Sobre Erik Torquato

Advogado criminalista e ativista pelo fim da guerra às drogas. Membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas - Rede Reforma. Conselheiro do Núcleo de Álcool, Drogas e Saúde Mental da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. Co-fundador da RENCA. Militante da Marcha da Maconha. (11) 97412-0420. E-mail eriktorquato.adv@gmail.com Tel: 21-97234-1865 / e-mail eriktorquato.adv@gmail.com
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