Em estudo que governo engaveta, álcool preocupa mais que crack

Fotografia da silhueta de uma pessoa, em perfil, que está entornando uma garrafa transparente contendo um líquido transparente; e um fundo desfocado. Pesquisa.

A pesquisa que desbancou o discurso de epidemia de drogas propagado pelo governo está escondida há quase um ano e meio e revela o uso de álcool como o maior problema. Entenda mais sobre o assunto no artigo de Cláudia Collucci para a Folha de S.Paulo.

Faz quase um ano e meio que a Senad (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas), do Ministério da Justiça, esconde uma pesquisa sobre o uso de drogas no país e que custou R$ 7 milhões aos cofres públicos. Há um ano, essa demora virou alvo de investigação do Ministério Público Federal, mas o estudo segue engavetado.

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A alegação do Ministério da Justiça é que há problemas metodológicos com o levantamento, que ouviu quase 17 mil pessoas no país e que foi realizado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). Segundo o ministério, essas falhas não permitiriam a comparação de dados com pesquisas anteriores.

Já a Fiocruz diz que a metodologia é a mesma que consta do edital e é equivalente à da Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios, do IBGE). Foram 400 pesquisadores, técnicos, entrevistadores de campo e equipe de apoio envolvidos no trabalho.

Na semana passada, 24 entidades ligadas à saúde pública e aos direitos humanos, entre elas o Cebes  (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde), a Associação Brasileira de Economia da Saúde e a Associação Paulista de Saúde Pública, emitiram nota pedindo a divulgação integral dos dados da pesquisa, que deveria servir de subsídio na elaboração de políticas de prevenção e controle dos problemas do uso abusivo de drogas.

Segundo a nota, o argumento do ministério para o engavetamento não se justifica. “A produção científica deve ser de conhecimento público da sociedade civil justamente para poder passar pela avaliação científica, o que só é possível ser feito por pares da academia (…).”

Os resultados não foram divulgados nem mesmo por solicitações feitas, inclusive pela Folha, usando a Lei de Acesso à Informação. Parte deles veio a público em reportagem exclusiva do The Intercept, em 31 de março último.

Os dados revelados mostram que a tão propagada epidemia de drogas que o governo e parlamentares insistem em propagar não existe de fato. O levantamento aponta, por exemplo, que quase 10% da população já usou alguma droga ilícita uma vez na vida (taxa semelhante a de outros países).

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O crack foi consumido por 0,9% da população alguma vez na vida, 0,3% fez uso no último ano e apenas 0,1% nos últimos 30 dias anteriores à pesquisa. No mesmo período, a maconha foi usada por 1,5%, e a cocaína, por 0,3% dos brasileiros.

O problema de maior destaque revelado pela pesquisa é o uso do álcool: 66,4% dos brasileiros já fizeram uso de bebidas alcoólicas na vida, 43,1% no último ano e 30,1% nos últimos 30 dias. Outros estudos vêm apontando o uso abusivo do álcool como um problema crescente entre os mais jovens e os mais velhos, relacionado à violência e a doenças diversas.

Uma análise recente do Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool) mostrou, por exemplo, um aumento no número de internações (6.9%) e mortes (6,6%) de pessoas com mais de 55 anos relacionadas ao consumo de bebidas alcoólicas.

“Fica claro que não há uma epidemia de drogas no Brasil, diferente do que tem sido propagado como argumento para propostas como políticas de flexibilização das regras para posse de armas de fogo, pacote de projetos anticrime, revisão da política de saúde mental com proposta de internação compulsória e assinatura de centenas de novos contratos com as comunidades terapêuticas somando altos valores anuais”, diz outro trecho da nota das entidades.

A quem interessa que esse relatório continue engavetado? Certamente não somos nós, sociedade civil, que pagamos R$ 7 milhões por ele. Ainda que a metodologia ou os resultados possam ser questionados, o escrutínio público só acontecerá se houver transparência. É assim que funciona a ciência.

Um dos impactos dessa censura é a impossibilidade de os dados serem usados na formulação de novas leis ou políticas na saúde pública relacionadas às drogas. Por exemplo, na discussão em curso no Supremo Tribunal Federal sobre a não criminalização do porte para consumo de drogas. Ou para balizar as novas normas na política de saúde mental a usuários, evitando que lobbies diversos falem mais alto.

Como disse a especialista em segurança pública e política de drogas Ilosa Szabó de Carvalho, colunista da Folha, “sem conhecer os dados, a sociedade não pode avaliar se as medidas do governo fazem sentido nem cobrar ações efetivas.” Repito a pergunta: a quem interessa isso?

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#PraCegoVer: fotografia ( de capa) da silhueta de uma pessoa, em perfil, que está entornando uma garrafa transparente contendo um líquido transparente; e um fundo desfocado.

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