Elisaldo Carlini, um pioneiro num país atrasado

Fotografia que mostra Elisaldo Carlini, do peito para cima, vestido com um jaleco branco sobre uma camisa xadrez marrom e um fundo cinza-claro. Imagem: recorte da foto de Luiz Maximiano (Trip).

Elisaldo Carlini se tornou referência da medicina canábica no mundo e percebeu o potencial do CBD contra convulsões ainda nos anos 1970. Saiba mais no texto de Denis R. Burgierman para a Época

A substância da moda na indústria farmacêutica hoje é o canabidiol, ou CBD, uma molécula encontrada na planta da maconha que tem dezenas de indicações médicas — serve para tratar desde ansiedade até epilepsia, praticamente sem efeitos colaterais. O que pouca gente sabe é que a história da pesquisa médica sobre o CBD começou no Brasil, há mais de 40 anos, muito antes de ganhar o mundo e gerar um mercado bilionário. O responsável por isso foi o desbravador Elisaldo Carlini, um cientista extraordinário e corajoso que esteve na fronteira da ciência até o último de seus 90 anos de vida, encerrados nesta quarta-feira.

Foi Carlini o destinatário de um carregamento internacional enviado de Jerusalém pelo químico israelense Raphael Mechoulam, em 1972, contendo quase meio quilo de CBD, isolado a partir de hashish (a tradicional resina árabe de maconha) que Mechoulam conseguiu com a polícia. Naquela época, o presidente dos Estados Unidos era o conservador Richard Nixon, o pai da chamada guerra às drogas, política repressiva (e burra) que praticamente pôs fim à ciência canábica nos Estados Unidos, país dos laboratórios mais avançados do mundo.

A ciência dessa planta só continuou avançando graças a alguns pesquisadores ousados localizados fora do eixo, longe dos Estados Unidos. Gente como Carlini, na Universidade Federal de São Paulo, e o israelense Mechoulam, que aos 89 anos segue ativo e fazendo pesquisa na Universidade Hebraica de Jerusalém (encontrei com ele lá no ano passado e ouvi-o dizer o quanto ele considerava Carlini excepcional).

Carlini usou o CBD israelense para fazer as primeiras pesquisas da ciência moderna, com camundongos e com humanos, para testar a eficácia da substância para tratar convulsões. Havia relatos há muitos séculos de que a cannabis é anticonvulsiva, mas, antes de Carlini, ninguém havia ainda testado essa hipótese em laboratórios modernos. Esta pesquisa, publicada em 1981 com base em quase dez anos de dados, está entre os tijolos iniciais que serviram de base para a medicina canábica, hoje um edifício enorme — um shopping center, na opinião de alguns.

Carlini esteve bem perto do centro dessa história desde o início. Recentemente o New York Times, ao contar a história do CBD, lembrou que Carlini foi um interlocutor fundamental de Carlton Turner, o oficial do governo americano que iniciou a primeira plantação de maconha para fins medicinais do país, na Universidade do Mississippi, em plena guerra às drogas.

Carlini manteve-se ativo e relevante até o final da vida, fazendo ciência com substâncias-tabu e também participando de discussões políticas, defendendo mudanças legais para trazer o Brasil para o século 21. Não era fácil nos anos 1970, durante a Ditadura Militar, continuou não sendo em tempos mais recentes. Ano retrasado, ele chegou a ser intimado a comparecer a uma delegacia para se defender numa investigação de apologia ao crime, por ter organizado um simpósio sobre maconha.

O preconceito contra a planta da cannabis atrapalhou muito o avanço científico a respeito do assunto no mundo todo. Mas, em países como os Estados Unidos e Israel, que valorizam a ciência e levam as pesquisas a sério, hoje há uma imensa indústria que se ergueu sobre os caminhos abertos por pioneiros como Mechoulam e os pesquisadores que tinham acesso à maconha do Mississipi.

Já no Brasil as coisas são um pouco mais complicadas. Em meio a um clima político tenso, com grande influência de populistas moralistas, numa cultura que não respeita nem entende ciência, o pioneirismo de Carlini não se traduziu em liderança. Mas ao menos serviu para inspirar uma nova geração de cientistas. Equipes brasileiras, que têm em Carlini um patrono, em instituições como a UFRN, o Instituto D’Or, a USP e a própria Unifesp de Carlini, têm feito pesquisas pioneiras sobre substâncias polêmicas, como as da própria cannabis e os psicodélicos.

Hoje há um projeto de lei tramitando no Congresso Nacional propondo regulamentar o plantio de cannabis para fins médicos e industriais, o PL 399/2015. Mês passado, a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) lançou uma petição propondo que o PL passe a ser conhecido como Lei Elisaldo Carlini.

Leia também:

Elisaldo Carlini: ‘A maconha foi condenada por preconceito’

#PraCegoVer: em destaque, fotografia que mostra Elisaldo Carlini, do peito para cima, vestido com um jaleco branco sobre uma camisa xadrez marrom e um fundo cinza-claro. Imagem: recorte da foto de Luiz Maximiano (Trip).

Deixe seu comentário
Assine a nossa newsletter e receba as melhores matérias diretamente no seu email!