Denis Burgierman: e se a farmácia ficasse no jardim?

Fotografia que mostra uma variedade de pílulas e cápsulas de cores branca, azul, vermelha e laranja, representando medicamentos tradicionais vendidos na farmácia.

Ninguém nega a importância da indústria da farmácia. Mas ela está numa crise existencial profunda, que só terá saída numa lógica diferente. Entenda mais na coluna de Denis Russo Burgierman na Época

A medicina moderna é uma maravilha da humanidade, grande responsável, depois do saneamento básico, por elevar a expectativa da duração da vida humana dos 30 que a natureza nos deu para muito além dos 70 anos. E, entre suas glórias, sem dúvida nenhuma, um dos maiores tesouros é a farmacologia alopática — o acervo de bilhões e bilhões de pílulas, comprimidos, ampolas, xaropes, vacinas, pomadas, supositórios que descem ao nível molecular para dissolver de dores de cabeças a tumores e são vendidos às toneladas em imensas farmácias iluminadas localizadas em lugares de destaque de qualquer cidade do mundo moderno.

Remédios transformaram em trivialidades doenças que no passado eram sentenças seguras de morte, frearam pandemias, mudaram a cultura, estenderam a vida sexual dos homens e revolucionaram a vida reprodutiva e social das mulheres. O escritor americano Thomas Hager afirmou que nossa espécie poderia se chamar Homo farmacus: o povo da pílula.

E, no entanto, parece haver algo muito errado com os nossos remédios. A indústria farmacêutica, tão central na nossa civilização, está numa crise existencial profunda. O ritmo de descoberta de novos medicamentos desacelerou e o custo para encontrar um novo explodiu — levando junto o custo da saúde.

Não é incomum que um único medicamento saia a um paciente por mais de R$ 1 milhão ao ano, e também não é incomum que as pessoas precisem tomar duas ou três dúzias de pílulas ao dia, parte delas para aliviar os efeitos colaterais de uma outra parte. No mundo inteiro, planos de saúde privados e sistemas públicos que fornecem medicamentos estão ou quebrando ou abandonando pacientes à própria sorte, ao negar-lhes tratamentos.

O caso dos remédios psiquiátricos é exemplar. Há muitos deles, todos são bem caros, e estão sob alta demanda nestes tempos de crescimento dos distúrbios mentais. E, no entanto, embora inegavelmente eles sejam fundamentais para milhões de pacientes, há um mal-estar cercando o assunto, bem sintetizado recentemente pelo médico dinamarquês Peter Gøtzsche num artigo publicado na Revista Médica Britânica: “Remédios psiquiátricos fazem mais mal do que bem”, disse.

Gøtzsche concluiu que “o alívio de curto-prazo [das drogas contra déficit de atenção e hiperatividade] parece ser substituído por danos de longo-prazo. Estudos em animais sugerem fortemente que essas drogas produzem dano cerebral, o que provavelmente é verdade para todas as drogas psicotrópicas”, como os antidepressivos e ansiolíticos.

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Algo semelhante está acontecendo com medicamentos oncológicos, neurológicos e tantos outros produzidos para tratar males complexos: eles estão ficando caros demais, em troca de um benefício cada vez mais questionável, com efeitos colaterais diversos, que vão da falência dos rins à falência financeira do paciente e à falência do Estado, inteiro, que precisa gastar mais com saúde a cada ano.

Saber desse contexto é relevante para entender a importância da descoberta do potencial terapêutico do sistema endocanabinoide. Esse sistema parece ser o alvo certo para tratar todas aquelas condições para as quais a farmacologia alopática tradicional não tinha respostas.

Claro que as empresas farmacêuticas, em crise, estão empolgadíssimas com a possibilidade de aumentar seu arsenal, com novos remédios, feitos no mesmo modelo que os antigos, mas a partir de moléculas extraídas ou copiadas daquelas encontradas na planta da Cannabis. Novos rótulos nas caixinhas de papel com tarja preta das velhas farmácias. Isso já está acontecendo, e vai acontecer cada vez mais.

Mas a possibilidade que se apresenta no horizonte é de uma mudança ainda mais profunda. Aparentemente, o sistema endocanabinoide é um excelente modulador de todos os processos que se aceleram na velhice. A Cannabis, por tantos anos demonizada por ser a perdição dos jovens, está se revelando, quem diria, a salvação dos idosos.

Doenças neurodegenerativas, câncer, ajustes de humor, sono, motivação, foco, distúrbios imunológicos — tudo aquilo que mais cedo ou mais tarde acaba nos afetando dá mostras de poder ser cuidado com doses pequenas de substâncias químicas presentes na Cannabis.

Não por acaso, o Sistema Único de Saúde (SUS) está sob crescente pressão financeira de pacientes que querem Cannabis. Mais e mais pessoas estão ganhando na Justiça o direito de importar caríssimos medicamentos de canabinoides, aumentando exponencialmente o buraco no Orçamento. Vai aumentar muito ainda.

É hora de encarar a questão com um olhar pragmático, focado na saúde pública. Claro que seria lindo se o Brasil pudesse distribuir de graça remédios de primeira qualidade fabricados pelos melhores laboratórios da Europa. Mas não pode. E nem faria sentido consumir tanto da nossa economia cuidando dos doentes.

Certamente continuaremos precisando de pílulas, ainda mais aquelas com benefícios específicos para males bem compreendidos. Mas não dá mais para seguir aumentando o rombo orçamentário do nosso modo de vida — já estamos, como sociedade, muito além do limite do cartão. Bem mais barato seria botar para render nosso clima ideal para a agricultura e ir buscar inspiração nos tempos pré-industriais para construir o futuro.

Para mim, não deveria haver nenhum quarteirão no Brasil sem ao menos um jardim onde crescessem medicamentos fitoterápicos para prevenir doenças e dar alívio à população idosa. E, no meio desse jardim, uma planta não deveria poder faltar: a Cannabis. Deixar de plantar maconha deveria ser crime contra a saúde pública e a probidade administrativa.

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#PraCegoVer: fotografia (de capa) que mostra uma variedade de pílulas e cápsulas de cores branca, azul, vermelha e laranja. Foto: REB Images / Getty.

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