Decisão da Anvisa sobre cannabis medicinal gera expectativas em vários setores

Fotografia em plano fechado da flor de uma planta de maconha, com pistilos creme e folhas serrilhadas. Foto: Martijn | Flickr.

De um lado, o governo federal. De outro, pacientes. No meio, as farmacêuticas, as associações e os profissionais de saúde. Para a Anvisa, a tarefa de criar normas para a cannabis medicinal no Brasil sofre pressões de vários setores – e, por enquanto, a decisão que corre pelos bastidores gera expectativa. As informações são da revista IstoÉ

Está decidido: a maconha no país será liberada para fins medicinais a partir do próximo mês de outubro. A decisão é da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e será comunicada em breve. No entanto, o anúncio oficial – esperado com ansiedade por milhares de brasileiros que se tratam com medicamentos à base da Cannabis – ainda é tratado como segredo de estado em Brasília. Nos bastidores do poder, a notícia da legalização é dada como certa, assim como também é certeiro a regulamentação de alguns medicamentos à base da planta. No entanto, por ora, só um grupo seleto de técnicos da Agência sabe como será a referida liberação: geral, como querem os pacientes usuários de Cannabis, ou restrita, como querem alguns ministros do governo.

A Anvisa está em uma sinuca de bico. Explica-se: Nos últimos dois meses, a Anvisa organizou diversas audiências públicas no país para saber a opinião da sociedade sobre a liberação do plantio de Cannabis Sativa em solo brasileiro e sobre a regulamentação da fabricação nacional de produtos e medicamentos à base da planta. Foram ouvidas milhares de pessoas, de associações de pacientes e indústrias de medicamentos de Cannabis, a corporações médicas e de farmacêuticos, além, evidentemente, de parlamentares e do próprio governo. Em meio às discussões, “ficou transparente o preconceito, a desinformação e as preocupações políticas que o tema envolve”, afirma o médico oncologista Leandro Ramires, presidente da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis (AMA-ME).

Avaliações à parte, de acordo com os participantes, os debates foram ricos em conteúdo. Ao longo de 60 dias, destrincharam-se informações técnicas e comprovações científicas de que a maconha para uso medicinal não é um bicho de sete cabeças. Na verdade, ela é a única alternativa para dar conforto à pacientes de muitas enfermidades. Nos encontros, ficou muito evidente também segundo Ramires que o Brasil precisa se posicionar sobre o tema, afinal em mais de 40 nações no mundo a planta é liberada para uso medicinal. Na América do Sul, o Brasil é o único país que ainda não caminha nesta direção.

“Conseguimos alguns avanços, como a liberação da importação de remédios à base da planta. Mas a importação de remédios não é a única saída”, diz Ramires. “Queremos plantar, cultivar, colher, fabricar e distribuir nossos próprios medicamentos”, defende.

Médico oncologista do Hospital das Clínicas da UFMG, Ramires tem um filho com epilepsia refratária e é usuário de um remédio à base da Cannabis. “Cheguei fazer tráfico internacional para tratar meu filho Benício com o óleo da maconha”, afirma. “Meu filho, que já teve 60 surtos num dia e se internou 48 vezes, 14 delas em UTI”, lembra, “hoje, Benício vive uma vida tranquila, diante das possibilidades de uma criança autista. “Há cinco anos, ele não se interna”, relata o médico. Foi a batalha com filho que levou o médico a se dedicar a causa da liberação dos tratamentos terapêuticos com produtos à base de Cannabis. “A questão da maconha não pode ser só tratada como caso de polícia, mas de saúde pública”, afirma. “A questão é política. Vamos ver o que vai dar”, diz, meio que reticente, Ramires.

A dúvida do médico é, também, a de cerca de dez mil brasileiros que hoje têm autorização da Anvisa para importar medicamentos à base da Cannabis. Devido ao altos custos dos medicamentos importados, como o Canabidiol, o pacientes têm a esperança da agencia de emitir um sinal verde para produzirem de forma associativa seus próprios medicamentos. O problema é que a Anvisa tem sofrido uma pressão gigante por parte do governo federal, leia-se ministro da Cidadania, Osmar Terra, para proibir geral o plantio da Cannabis em solo brasileiro e a regulamentação dos medicamentos à base da planta.

Num arroubo retórico, ele chegou a ameaçar fechar a agência se a mesma liberar o plantio da maconha para fins medicinais e científicos no país. “Somos contra a legalização da maconha, e o que a Anvisa está fazendo é o primeiro passo para legalizar a maconha no Brasil”, bradou o ministro. Para Terra, uma alternativa seria a produção sintética dos medicamentos. “Todos os produtos podem ser feitos sinteticamente. Senão tem que plantar folha de coca no Brasil para ter lidocaína, vai ter que plantar papoula para ter morfina, e não tem sentido isso aí”, disse o ministro. Não existe qualquer pesquisa, autorização para comercialização ou regulamentação de produtos sintéticos de Cannabis no Brasil, afirma a Anvisa.

Em meio à verborragia de Terra, querendo ou não o ministro, a Anvisa irá liberar a maconha para fins medicinais. Sabe-se que até agora uma das dezenas de indicações terapêuticas, a epilepsia refratária, será contemplada pelas novas normas de regularização. No entanto, a tímida resolução divide a opinião de técnicos da Anvisa, que defendiam uma liberação menos conservadora. “Não estamos resolvendo em nada o problema que nos foi colocado pela sociedade”, afirma à ISTOÉ, um dos 11 representantes do Conselho Consultivo da agência, que pede anonimato. “A regulamentação que o corpo técnico da Anvisa, que nos assessora, queria era para dar mais segurança jurídica e sanitária aos pacientes e familiares ampliando o uso e possibilitando o plantio, colheita e distribuição ds produtos aqui no Brasil. Não fizemos isso”, afirma o conselheiro.

A tomada de decisão da cúpula da agência de somente dar aval a importação dos remédios com Canabidiol e contrário ao plantio e cultivo da Cannabis para fins de pesquisa e produção de medicamentos vai de encontro ao parecer do Ministério da Saúde. Elaborado no último mês de agosto, o documento, alega o Ministério, é fruto de da revisão de estudos ligados a casos de uso de derivados da cannabis para “doenças debilitantes graves ou com ameaças à vida e sem alternativa terapêutica” feitos pela secretaria de ciência e tecnologia da pasta e de consulta a organizações da área de saúde, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), o Conselho Federal de Farmácia (CFF). A resolução da cúpula da Anvisa de autorizar a regulamentação apenas para o registro do Canabidiol (CBD) criou um clima de mal-estar geral no corpo técnico da agência. Nas consultas públicas e nas revisões de estudos científicos ficou evidente os benefícios do Tetraidrocanabidiol (THC), outro cabidinoide existente na maconha, esse com potencial psicoativo, no tratamento de outras doenças.

Devido as pressões internas do corpo técnico da agência, a decisão da liberação pode ser um pouco mais ampla em referência a regulamentação dos medicamentos. A justificativa do corpo técnico da Anvisa, para cobrar da cúpula da agência, um posicionamento menos político e mais técnico, é que, atualmente, o Brasil já tem um medicamento registrado à base de maconha, o Mevatyl. Composto de THC e CBD, o remédio é indicado para o tratamento de espasmos musculares nos casos de esclerose múltipla. Na verdade, desde 2015, a Anvisa autoriza a importação de óleos e outros produtos à base de maconha para pacientes de autismo, dores crônicas, Parkinson e para alguns tipos de câncer. Atualmente, dez mil pessoas têm autorização para importar o produto. O grande problema da importação é o alto custo do remédio que, no mínimo, custa em média R$ 1,5 mil, um frasco de 30 ml. Há quem precise de três frascos ao mês. Em função do preço altíssimo do medicamento importado, cerca de 70 famílias no país têm autorização judicial para o cultivo e fabricação do óleo na própria residência, cujo custo do frasco sai a 50 reais.

As associações de pacientes já preparam centenas de ações judiciais para interpelar a agência na justiça sobre a decisão de somente regulamentar o remédio para uma única enfermidade, sendo que ela, hoje, já autoriza para outra tantas doenças. Ainda não se consolidou totalmente as outras decisões que serão comunicadas junto à liberação da maconha para uso medicinal. Para tentar amenizar as críticas e “jogar para torcida”, espera-se que a Anvisa vá aprovar o plantio para produção de medicamentos e pesquisa. Porém, com exigências tão absurdas de segurança e sanitárias que as associações não serão capazes de atender.

Desde 2006, no entanto, a lei 11.343 prevê a possibilidade de que a União autorize o plantio, o cultura e a colheita “para fins medicinais e de pesquisas em locais e prazo predeterminados e mediante fiscalização”. Ao certo, será a primeira tentativa da agência em regular o tema. Não era sem tempo. Na verdade, vive-se nos país uma situação contraditória em relação ao uso medicinal da maconha, entende o advogado Ricardo Nemer.

“A Anvisa libera regulamenta o registro de medicamentos importados sendo que nós brasileiros, que temos a expertise da fabricação do mesmo produto quase de forma clandestina, não podemos fabricá-los”, diz Nemer. “Trata-se de uma hipocrisia”, afirma ele, que representa a Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Reforma).

Outra força política que pode ampliar a decisão da Anvisa de só liberar para registro o Canabidiol são as pressões das indústrias do mercado farmacêutico de cannabis. Esse grupo tem “acampado” no Planalto Central em busca de uma regulação que atenda o mundo dos negócios. O mercado de maconha medicinal é um dos segmentos que mais cresce no mundo, com taxa de 22% ao ano. Segundo estudo da consultoria New Frontier Data, especializada em análises de negócios da indústria da cannabis medicinal, com a regularização do setor no Brasil as empresas movimentarão cerca de 5 bilhões de dólares, nos próximos três anos. Ao fim e ao cabo, será um grande negócio.

Os dirigentes das organizações de pacientes não vêem com bons olhos essa euforia do mercado. “Corre-se o risco que o aval da Anvisa ao cultivo seja restrito apenas as grandes empresas do setor, que vai manter os preços caros dos tratamentos”, avalia Cidinha Carvalho, presidente da Associação de Cannabis e Saúde (CULTIVE), em São Paulo. Mãe de Clárian, uma adolescente que tem Síndrome de Dravet, Cidinha é uma das 70 pessoas no Brasil que têm autorização judicial para cultivar e fabricar o próprio óleo de cannabis para o tratamento de saúde da filha. Ela conta que, hoje, um frasco de canabidiol no mercado custa em média R$ 1.500 e a fabricação artesanal do mesmo óleo, como o produzido por ela e o marido, chegam a gastar 50 reais.

“O grande desafio e a democratização total da maconha medicinal. Não quero criar grandes expectativas em relação à Anvisa”, avalia. Ao cabo, ela tem razão em relação ao sentimento de desânimo. Entre as propostas que estão sendo analisadas pela Anvisa sobre a regularização dos medicamentos, os brasileiros pacientes de doenças graves só poderão importar os produtos à base do canabidiol. “Importar não é a saída”, dispara Cidinha.

A médica neuro oncológica Paula Dall’Setlla, diretora científica da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis (AMA-ME), entende que boa parte da população ainda não tem conhecimento do que está acontecendo. “Estamos diante de uma nova era da Cannabis e teremos que educar médicos, jovens e idosos para explicar os benefícios da maconha no organismo”, avalia. “É uma revolução na medicina que vem de 10 mil anos e só agora estamos vivenciando. O Brasil não pode ficar para trás nessa corrida e deixar milhões de pessoas sofrendo com dores, surtos e ataques sendo que existe um super remédio”, finaliza.

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#PraCegoVer: Fotografia mostra close de pé de maconha em cultivo, com pistilos brancos à mostra e as folhas serrilhadas em destaque. Foto: Creative Commons.

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