Debate sobre a discussão da cannabis no Brasil precisa de médicos e cientistas

Fotografia em vista superior do ramo apical de um pé de cannabis no início da floração e um fundo branco. Foto: WildOne | Pixabay.

A proibição gera obstáculos à pesquisa da cannabis como o distanciamento de médicos e cientistas e priva a sociedade de inúmeros benefícios terapêuticos. Entenda mais no artigo de Marcelo De Vita Grecco* para o Estadão

Quem dera se existisse um medicamento que pudesse ajudar a melhorar a qualidade de vida de pacientes com formas de epilepsia aguda, doenças crônicas ou daqueles com distúrbios derivados da quimioterapia. Também seria magnífico se houvesse substância que atuasse no equilíbrio das funções de uma grande variedade de sistemas fisiológicos do corpo, incluindo aspectos como dores, inflamações, metabolismo, qualidade do sono, estresse e memória, entre outros. Porém, esse desejo que parece sonho já é realidade.

Desde que o cientista israelense Raphael Mechoulam, pioneiro nos estudos de aplicação medicinal da cannabis, descobriu os dois principais fitocanabinoides, o canabidiol (CBD), em 1963, e o tetraidrocanabinol (THC), em 1964, avanços importantes foram feitos. Em especial, a partir de 1992, depois de dois pesquisadores da equipe de Mechoulam descreverem o sistema endocanabinoide, naturalmente presente no organismo humano e modulador das nossas funções fisiológicas. No entanto, o que aparentava ser um ótimo ponto de partida se transformou em um roteiro que permanece longe de aproveitar todo o potencial do enredo.

Isso se deve em grande parte a proibições em relação à planta. A guerra contra as drogas iniciada nos Estados Unidos pelo presidente Richard Nixon, nos anos 1970, e continuada por Ronald Reagan, na década seguinte, atrasou muito os estudos e complicou a vida de cientistas devido às dificuldades de acesso à cannabis. Consequentemente, investimentos foram reduzidos e médicos e cientistas se distanciaram desta vertente. O meio acadêmico também se colocou à margem e, inexplicavelmente, os estudos sobre o sistema endocanabinoide continuam fora das salas de aula nas escolas de Medicina. E a literatura médica traz poucas referências.

O impacto devastador desse conjunto de fatores provocou atraso de décadas e uma grande lacuna, que pode ser comprovada por números. Pesquisa recente do Centro de Câncer da Universidade do Colorado mostra que 73% dos oncologistas entrevistados acreditam que o uso medicinal da cannabis pode trazer benefícios aos pacientes. Porém, apenas 46% se sentem confortáveis em fazer a prescrição. Já no Brasil, apenas 1,1 mil dos 450 mil médicos em atividade são capacitados para prescrever medicamentos à base de cannabis.

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Se dependesse de quem precisa dos medicamentos, certamente esse cenário seria bem diferente. Dados de pesquisa realizada pela New Frontier mostram que 94% dos pacientes que recorreram a medicamentos à base de cannabis tiveram sua condição melhorada, sendo que 66% deles relataram evolução significativa. Desse conjunto, 73% buscaram, nesses produtos, substituto ou alternativa para outros medicamentos. Além disso, observando as últimas décadas, o apoio ao uso medicinal da cannabis vem crescendo, e muito, em todas as faixas etárias da população.

Algo definitivamente precisa mudar e a virada nessa narrativa urge para o benefício de toda a sociedade. Contudo, a concretização desse movimento em relação ao uso medicinal da cannabis depende, necessariamente, da participação de médicos e cientistas no desenvolvimento de novos produtos e, especialmente, nas discussões em torno da legalização do cultivo da planta e da regulamentação do mercado. Eles são os especialistas a serem ouvidos por políticos, pelas organizações da sociedade civil e pelas comunidades. Trazer o engajamento da medicina e ciência para essa questão passa pela disponibilização de informações e dados, papel que pode ser bem desempenhado por consultorias e novas start-ups, priorizando o profissionalismo no desenvolvimento das ações. Existem alguns passos nesse sentido, mas a mudança ainda é incipiente.

Além de médicos, cientistas e meio acadêmico, temos ainda importante papel a ser desempenhado pela indústria farmacêutica. Em todo o mundo, esse setor movimenta mais de US$ 1,7 trilhão, montante equivalente ao produto interno bruto de importantes países. Os grandes laboratórios estão começando a investir mais em pesquisas e testes clínicos, mas fazem isso de forma cautelosa, observando o cenário em relação à legislação e marcos regulatórios. Ou seja, correm por fora buscando construir seus portfólios e já existem mais de 50 patentes registradas. Para essas empresas, os medicamentos à base de cannabis podem representar inovação e novas receitas. Para a sociedade, significa a oportunidade de contar com produtos seguros, testados e que proporcionam doses repetíveis e efeitos mensuráveis.

Trata-se de questão de saúde pública e a união de forças é necessária para facilitar pesquisas e estudos, tanto com canabidiol quanto THC. Novo estímulo do meio científico veio da Organização Mundial de Saúde e de academias nacionais de ciências dos Estados Unidos, que afirmaram o valor terapêutico da cannabis. A OMS foi além e recomendou remover o CBD da lista de substâncias proibidas.

As evidências científicas geram sinais claros, cada vez mais fortes e em maior volume. Avançar em ritmo mais intenso é preciso e, sob o ponto de vista de quem pode se beneficiar com a melhora substancial da qualidade de vida, vale parafrasear o saudoso Betinho, pois ‘quem tem necessidade de medicamento tem pressa’.

*Marcelo De Vita Grecco é cofundador e diretor de Desenvolvimento de Negócios da The Green Hub.

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia em vista superior do ramo apical de um pé de maconha no início da floração e um fundo branco. Foto: WildOne | Pixabay.

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