Concreto de cannabis: das pontes romanas a um possível material do futuro

Fotografia de um bloco de hempcrete (concreto de cannabis) de formato estreito e comprido, sobre uma superfície branca lisa. Imagem: Scott Lewis | Flickr.

A guerra contra a cannabis sempre foi motivada por fatores raciais, econômicos, políticos e morais. Estudos científicos são imprescindíveis para tornar esse material promissor mais popular e barato para uso massivo na construção civil. Saiba mais sobre o tema no artigo de Eduardo Souza* para o ArchDaily

Muito preconceito e contradições envolvem a história da Cannabis sativa pelo mundo. Estima-se que o cânhamo tenha sido uma das primeiras plantas a serem cultivadas pela humanidade. Arqueólogos encontraram remanescentes de tecidos de cânhamo na antiga Mesopotâmia (atualmente Irã e Iraque), que remontam ao ano 8.000 a.C. [1]. Há registros na China, entre 6 e 4 mil a.C., quanto ao consumo das sementes e óleos. Com a chegada à Europa, seu principal uso era para a fabricação de cordas para navio e tecidos. Inclusive as velas e cordas dos navios de Cristóvão Colombo eram desse material, os primeiros livros após a revolução de Gutemberg [2] e muitas das pinturas de Rembrandt e Van Gogh foram feitas de cânhamo.

Para a construção civil, seu uso também não é novo. Uma argamassa feita de cânhamo foi descoberta em pilares de pontes construídas pelos merovíngios no século VI, onde hoje é a França. Sabe-se que os romanos adicionavam as fibras do cânhamo para reforçar as argamassas de suas construções. Hoje em dia, ainda que existam entraves legais em muitos países, a utilização do cânhamo como um material da construção civil tem tido resultados animadores, com pesquisas evidenciando suas boas características termoacústicas e sustentáveis. O cânhamo pode ser moldado como painéis fibrosos, revestimentos, chapas e até como tijolos.

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É importante iniciar pontuando que cânhamo e maconha pertencem à mesma espécie (Cannabis sativa), embora sejam variedades originais de diferentes cruzamentos e seleções. A maconha possui porcentagens mais altas, de até 20%, de THC (tetraidrocanabinol), que é a principal substância psicoativa, localizada sobretudo na flor da planta. O cânhamo industrial, por sua vez, é cultivado por suas sementes, fibras e caule, e contém cerca de 0,3% de THC, que não é suficiente para surtir algum efeito em uma pessoa.

O cânhamo demanda pouca água para crescer e, portanto, não requer irrigação artificial, e cresce aproximadamente 50 vezes mais rápido que uma árvore. Após colhidas e cortadas, as plantas são secas por alguns dias antes de serem agrupadas e despejadas em recipientes com água, o que incha os caules. Quando secas, as fibras podem servir, entre outros usos, para a produção de papel, tecidos, cordas, embalagens biodegradáveis, biocombustível e materiais de construção. Nesse último caso, o material pode ser utilizado como um isolante termoacústico, tal qual uma lã de vidro ou rocha, ou como o concreto de cânhamo, muito chamado de hempcrete ou hemp concrete. Usando betoneiras, mistura-se o cânhamo, calcário em pó e água, para obter uma pasta espessa. Através de reações químicas entre os componentes, a mistura se petrifica e transforma-se em um bloco leve, porém bastante resistente. Para a confecção de paredes, a mistura pode ser disposta como blocos, pulverizada ou despejada em formas lineares, no mesmo método das paredes de taipa.

A inovação envolvendo o concreto de cânhamo como material de construção é sua função como um material de desempenho múltiplo, substituindo inteiramente os agregados minerais, usados em concretos convencionais, enquanto em aplicações históricas as fibras naturais eram adicionadas principalmente em quantidades escassas a concretos e argamassas, por exemplo, para evitar retrações em gesso ou tijolo de barro. [3] Quando curado, retém uma grande quantidade de ar, com uma densidade que equivale a 15% do concreto tradicional, sendo portanto um ótimo isolante térmico e acústico. Uma característica interessante é que se trata de um material ao mesmo tempo isolante térmico e com boa inércia térmica [4]. Ou seja, ainda que leve e poroso, o Hempcrete pode armazenar rapidamente energia, mas liberá-la paulatinamente, sendo uma opção interessante para climas com alta variação de temperatura entre dia e noite. Também apresenta boa resistência ao fogo, é atóxico e possui resistência natural ao mofo e insetos. Há pesquisas, inclusive, que apontam o hempcrete como um material carbono-negativo, que além de compensar o que é emitido na sua produção, chega a estocar carbono.

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Para atingir suas propriedades termoacústicas, o material necessita “respirar”, isto é, ter interação entre ambiente interno e externo — isso permite que o cânhamo absorva e disperse o vapor de água (umidade), e amorteça as flutuações de temperatura. Assim, as paredes de hempcrete podem até receber revestimentos, contanto que eles permitam essas trocas.

O desempenho mecânico do concreto de cânhamo é, entretanto, bastante inferior ao do concreto tradicional ou do aço. Tem resistência a compressão de 2 MPa, quando não excede uma densidade de 1.000 kg/m2, o que é comparável a tijolos de adobe, por exemplo. [3] Funciona melhor como uma vedação do que como paredes autoportantes. Outras desvantagens em relação a alvenarias comuns é o tempo de cura, o que pode ser amenizado com o uso de tijolos. Além disso, continua sendo um produto mais caro e há pouca disponibilidade de informações e mão de obra para trabalhar com esta nova tecnologia.

Ainda que isso esteja mudando aos poucos, grande parte da carência de estudos técnicos sobre esse material ocorre por conta de legislações. A história mostra que, mais do que por evidências científicas, a guerra contra a cannabis foi motivada por fatores raciais, econômicos, políticos e morais. E a mesma proibição à droga muitas vezes vale às plantas que não serviriam para o uso recreativo. Aos poucos, o mundo vem reconsiderando algumas proibições e há países com legislações que permitem o cultivo de plantas de cannabis para uso medicinal e até mesmo recreativo. Atualmente o principal produtor mundial de cânhamo é a China, que cultiva mais de 70% do total mundial, mas há outros países com produções relevantes.

Pesquisas, teste e experimentações são imprescindíveis para tornar esse material tão promissor mais popular e barato para um uso massivo na construção civil. E, talvez, fazer com que uma das plantas cultivadas há mais tempo pela humanidade possa se tornar um material de construção sustentável e eficiente do futuro.

*Eduardo Souza é Arquiteto Urbanista e Mestre no Programa de Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Referências

[1] The People’s History. The Thistle. Volume 13, Number 2: Sept./Oct., 2000.
[2] Hemp users’ stories and its use as a medical remedy. MMedics.
[3] Monika Brümmer, Mª Paz Sáez-Pérez, and Jorge Durán Suárez. Hemp Concrete: A High Performance Material for Green-Building and Retrofitting.
[4] Komsi, Jere. Thermal Properties of Hempcrete, a Case Study. Helsinki Metropolia University of Applied Sciences.

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