Conamp se posiciona contra o PL da cannabis em nota embasada em fake news

Fotografia da robusta cola de uma planta de maconha de pistilos verde-claros e marrons e folhas rajadas de castanho, em fundo escuro. Crédito: THCamera Cannabis Art. repúdio

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) emitiu uma nota técnica onde se posiciona contra o PL 399/2015, que regulamenta a cannabis com fins medicinais, e difunde uma série de informações falsas

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) publicou, nesta segunda-feira (17), nota técnica contra o Projeto de Lei nº 399/2015, que regulamenta o cultivo, produção e venda de cannabis para os usos medicinal e industrial no Brasil.

A entidade argumenta que o texto original do PL 399/2015, de autoria do deputado federal Fábio Mitidieri (PSD-SE), perdeu completamente o seu objeto após a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovar a RDC 327/2019, uma vez que esta já disciplina a produção e comercialização de medicamentos à base de cannabis, como estabelecia a proposta original.

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Segundo a nota, o relator do PL 399, deputado Luciano Ducci (PSB-PR), “ao invés de respeitar tais normas regulamentares”, apresentou um substitutivo para regulamentar também o cultivo da cannabis.

No documento, a Conamp declara ser contrária ao Projeto de Lei 399/2015, na forma do substitutivo apresentado, e apresenta uma sucessão de fake news e mentiras como justificativas para seu posicionamento.

A seguir, apontamos e desconstruímos as falácias sobre o PL 399 e a cannabis apresentadas pela Conamp:

“Cultivo liberado”

O projeto de lei 399/2015 não libera o cultivo de cannabis. De fato, o PL mantém proibido o cultivo doméstico para qualquer finalidade e define que o plantio de cannabis, tanto para fins medicinais quanto industriais, deve obedecer a requisitos como: cota de cultivo, rastreabilidade da produção (da semente à venda), plano de segurança para prevenção de desvios, presença de responsável técnico.

O projeto ainda prevê que o local do cultivo e suas áreas adjacentes deverão ter o seu perímetro protegido, de forma a impedir o acesso a pessoas não autorizadas e assegurar os controles necessários para mitigar os riscos de disseminação e o desvio, provido de sistema de videomonitoramento em todos os pontos de entrada, com restrição de acesso, sistema de alarme de segurança e cercas elétricas.

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“THC causa dependência química e escraviza cérebros”

Os poucos estudos existentes até o momento sobre transtorno por uso de cannabis mostram que a abstinência da maconha não é fatal ou medicamente perigosa e que a tolerância à cannabis não é um estado final permanente que é alcançado após o uso crônico, mas sim um estado temporário de sensibilidade reduzida à exposição à cannabis, que flutua dinamicamente através do espectro total-a-nenhuma experiência dos efeitos da planta, dependendo do padrão de uso.

Entretanto, pouco se sabe sobre os padrões e motivos de uso de cannabis subjacentes a esses padrões entre usuários médicos e adultos, e o impacto das mudanças nos padrões de uso não foi estudado em laboratório. Logo, o conhecimento sobre a frequência, dose e duração do uso de cannabis necessários para alcançar, manter ou diminuir a tolerância é muito limitado.

O THC não “escraviza cérebros” como brame a Conamp. Na verdade, o composto possui efeitos medicinais para doenças que afetam o órgão.

Um estudo realizado pela Universidade Complutense de Madrid, na Espanha, mostrou que o THC é eficaz no tratamento de gliomas, um tipo de tumor muito agressivo que pode aparecer no cérebro ou na medula espinhal, graças ao mecanismo de “reciclagem celular”, ou autofagia, que é o processo através do qual as células reciclam alguns de seus componentes para que possam sobreviver.

“Identificamos um dos fatores que determina que a ativação da autofagia leve à morte das células tumorais”, disse Guillermo Velasco, pesquisador do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular I da Universidade Complutense e autor principal do estudo.

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As células de glioma foram tratadas de duas formas diferentes: privando-as de nutrientes e fornecendo THC.

Em ambas as situações as células cancerosas deram início ao seu processo de autofagia para que pudessem sobreviver, mas no caso das tratadas com THC o fenômeno ocorreu de maneira mais agressiva, desencadeando um processo que terminava com a morte da célula.

A pesquisa científica também já revelou que o THC inibe a formação de placas da proteína beta-amiloides por meio do bloqueio da enzima que as produz. O acúmulo dessas placas nos neurônios já foi identificado pela ciência com uma das causas para o mal de Alzheimer.

Os resultados de uma pesquisa com pacientes portadores da Parkinson na Alemanha, publicada no Journal of Parkinson’s Disease, mostram que mais de 8% dos pacientes com a condição relataram usar produtos de cannabis e mais da metade desses usuários (54%) relatou um efeito clínico benéfico.

Mais de 40% dos usuários relataram que ajudou a controlar a dor e as cãibras musculares, e mais de 20% dos usuários relataram uma redução da rigidez (acinesia), congelamento, tremor, depressão, ansiedade e pernas inquietas. Os pacientes relataram que os produtos de cannabis inalados contendo THC foram mais eficientes no tratamento da rigidez do que os produtos orais contendo CBD.

“Califórnia sofre com ações do crime organizado”

Um estudo de 2017 revelou que tanto crimes violentos quanto crimes contra a propriedade diminuíram em cerca de 20% na Califórnia após a legalização da cannabis medicinal.

Um dos últimos estudos sobre a relação entre a maconha legal e a incidência de crimes examinou dados criminais de antes e após a legalização da maconha no Colorado e em Washington, para saber como a mudança na lei afetou a taxa de crimes nos estados vizinhos. O resultado da pesquisa é que o uso adulto de maconha nesses dois estados pode ter contribuído para a atual redução de crimes nos estados vizinhos.

“Nós não detectamos nenhum aumento nas taxas de vários crimes nas regiões de fronteira dos estados vizinhos ao Colorado e Washington que não legalizaram a maconha”, escreveu um dos autores do estudo, que foi publicado em maio de 2020 no Journal of Drug Issues. “Além do mais, nós observamos uma substancial redução em certos tipos de crimes, como roubos e furtos, nos condados fronteiriços com o Colorado”.

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“No total, os resultados para a região do Colorado fornecem algumas evidências que sugerem uma redução efetiva dos crimes devido à legalização da maconha nos estados vizinhos. Esse achado desafia o argumento de que a legalização iria aumentar a ocorrência de crimes.”

A pesquisa foi conduzida por Guangzhen Wu, da Universidade de Utah, Francis D. Boateng, da Universidade de Mississipi, e Thomas Roney, consultor econômico e de estatística das Universidades de Mississipi e do Texas.

“Algodão doce, bala, chocolate e pirulitos medicinais”

Na nota “técnica”, a Conamp, uma entidade que representa mais de 16 mil Promotores e Procuradores de Justiça, diz que “algodão doce, bala, chocolate e pirulitos” são opções de formatos farmacêuticos permitidos pelo PL 399.

O PL 399 prevê que “medicamentos canabinoides poderão ser produzidos e comercializados em qualquer forma farmacêutica permitida (sólida, líquida, gasosa e semissólida)”, ou seja, produtos farmacêuticos em formas sólida (comprimidos, cápsulas, supositórios etc.), líquida (soluções, xaropes, suspensões etc.), gasosa (aerossóis e sprays) e semissólida (pastas, géis, cremes, pomadas etc.). Algodão doce, bala, chocolate e pirulitos são produtos alimentícios, não farmacêuticos.

Esta fake news é claramente uma tentativa de enganar o público, pois não é possível que profissionais que precisam ter graduação em Direito, inscrição na OAB e passar em concurso público de alto nível não saibam o que é um alimento e o que é um produto farmacêutico.

“Cannabis é porta de entrada”

O consumo da maconha está associado com melhores resultados em indivíduos no período de tratamento, ajudando-os a desistirem de substâncias altamente viciantes como a heroína.

Pesquisadores da Universidade de Columbia relataram que os pacientes que usaram maconha durante a fase de tratamento ambulatorial foram capazes de dormir bem, apresentarem menos ansiedade e tinham maior probabilidade de completar o tratamento em comparação com os outros indivíduos, em um estudo publicado na revista Drug and Alcohol Dependence.

Segundo os autores do estudo, “uma das conclusões interessantes observadas no estudo foi o efeito benéfico de fumar maconha no período de tratamento”.

Estudos realizados pelo Centro de Uso de Substâncias em Vancouver, no Canadá, mostraram que o uso de maconha permite que as pessoas consumam menos crack. O grupo de pesquisadores, das universidades canadenses de British Columbia, Montreal e Simon Fraser, estudou entre 2012 e 2015 a rotina de 122 dependentes de crack que haviam relatado estar usando maconha e crack.

Os resultados apontaram que a cannabis auxilia na redução do consumo de crack. O número de usuários que relataram uso diário de crack caiu de 35% para pouco menos de 20% após o consumo das duas substâncias.

A pesquisa canadense se alinha com um estudo realizado no Brasil, que acompanhou 25 pessoas que buscavam tratamento contra o uso problemático de drogas e relataram usar maconha para reduzir a vontade por outras drogas mais pesadas como a cocaína e o crack. Em um período de nove meses de estudo, realizado por Dartiu Xavier e outros pesquisadores, 68% dos participantes tinham parado de consumir o crack.

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Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade do Novo México (UNM), nos EUA, durou 5 anos e envolveu 125 participantes, todos com dores crônicas. Dos participantes, 83 utilizaram a cannabis com as drogas prescritas e 42 escolheram não usar.

O estudo revelou que 34% dos que se medicavam também com a maconha deixaram de usar os seus remédios para dor. Já entre os que não consumiram a planta, somente 2% abandonaram as drogas, em outras palavras: 98% continuaram a usar medicamentos prescritos.

Em maio de 2018, outro estudo, realizado com pacientes adultos inscritos no Medicaid — um programa de saúde social dos Estados Unidos para famílias de baixa renda —, descobriu que, entre 2011 e 2016, os estados onde a maconha medicinal legal estava disponível para uso no alívio da dor tiveram uma taxa de prescrição de opiáceos 6% menor, em comparação aos demais estados.

Além disso, os estados que legalizaram a maconha para fins adultos tiveram uma taxa de prescrição de medicamentos cerca de 6% mais baixa do que aqueles com maconha medicinal, ou seja, a maconha para uso adulto dá às pessoas um acesso ainda melhor à erva como um analgésico.

Ainda sobre cannabis e drogas prescritas, um terceiro estudo mostra como a maconha pode combater a crise de opioides em pacientes acima dos 65 anos. A pesquisa feita com pacientes do Medicare — o sistema de seguros de saúde gerido pelo governo dos EUA destinado aos idosos — analisou os dados entre 2011 e 2015 e detectou uma queda de 14% nas doses de medicamentos prescritos por dia nos 14 estados com dispensários de maconha medicinal (e mais nove que legalizaram ao longo do estudo).

“Cannabis causa esquizofrenia”

A pesquisa existente até o momento sobre maconha e sintomas psicóticos aponta para uma relação meramente estatística entre a ocorrência de psicose e o uso pesado de cannabis.

A epidemiologista britânica Suzanne Gage publicou um artigo na revista The Lancet, onde se demonstra que esquizofrênicos crônicos e pessoas que sofrem surtos de psicose têm mais chances de serem usuárias crônicas e pesadas de cannabis de alta potência. Contudo, o estudo revelou que pessoas sujeitas a ter surtos psicóticos ou desenvolver esquizofrenia buscam a cannabis mais do que a média da população, sem encontrar indícios de que a planta cause esquizofrenia.

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Na realidade, a cannabis pode ser uma opção de tratamento eficaz para a esquizofrenia, segundo um estudo realizado pelos pesquisadores Jegason P. Diviant e Jacob M. Vigil, do Departamento de Psicologia da Universidade do Novo México (EUA), e Sarah S. Stith, do Departamento de Economia da universidade.

Os pesquisadores revisaram dados anteriores sobre o impacto de fatores ambientais, particularmente o efeito da atividade autoimune, na expressão de perfis esquizofrênicos, bem como exploraram o papel da terapia com cannabis na regulação da função imunológica.

Os resultados do estudo revelaram que a cannabis pode oferecer um tratamento eficaz para a esquizofrenia, isoladamente ou em conjunto com outros medicamentos.

“Uma revisão da literatura mostra que o consumo de fitocanabinoides pode ser uma opção de tratamento seguro e eficaz para a esquizofrenia como terapia primária ou adjuvante”, escreveram os autores do estudo.

“Pesquisas emergentes sugerem que a cannabis pode ser usada como um tratamento para a esquizofrenia dentro de uma perspectiva etiológica mais ampla que enfoca as causas ambientais, autoimunes e neuroinflamatórias do distúrbio, oferecendo um novo começo e novas esperanças para aqueles que sofrem desta doença debilitante e mal compreendida”, segundo o relatório.

Desserviço à população

O documento emitido pela Conamp serve apenas como mais um desserviço para o avanço da regulação da cannabis para uso medicinal no país e milhares de pacientes que necessitam de tratamentos à base de maconha.

Para haver o bom debate deve-se levar em consideração e respeitar todas as opiniões e posicionamentos, sejam eles favoráveis ou contrários.

Agora, ser contra ou a favor do PL 399, ou qualquer outra questão, não justifica a manipulação de dados e divulgação de fake news que apenas atrapalham o debate, ainda mais quando se trata de um assunto tão importante para a sociedade.

Saiba mais:

O que é o PL 399/2015?

#PraCegoVer: fotografia de um robusto top bud de pistilos verde-claros e marrons, e folhas rajadas de castanho, em fundo escuro. Crédito: THCamera Cannabis Art.

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