Como a legalização das drogas ajudaria o Rio de Janeiro?

O Rio, dominado pelo tráfico de drogas, milícias e, por consequência, a violência, seria beneficiado por uma mudança na lei de drogas? Quem responde a essa pergunta são quatro especialistas ouvidos por CartaCapital, que avaliam a ligação entre criminalização das drogas e violência urbana. Confira abaixo.

Depois de um cotidiano de extrema violência que durou uma semana, há pouco mais de dois dias a comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro, vive uma relativa paz. Na terça-feira 26, quinto dia de ocupação das forças de segurança, não houve registro de tiroteio.

Enquanto duas facções brigam pelo domínio do território, a população sofre as consequências e vê sua rotina alterada, com serviços públicos sem funcionamento e ruas interditadas. Em meio a um confronto direto de lideranças do tráfico, moradores pedem “socorro” por meio de bilhetes, conforme reportagem do Jornal Nacional. Um dos desabafos, escrito à mão numa folha de papel, pede que as autoridades acabem com um depósito clandestino de gás na comunidade. O estabelecimento ilegal cobra, pelo botijão, R$ 92, informa o morador.

Ainda na terça-feira, um helicóptero do Exército sobrevoou a Rocinha e soldados lançaram panfletos que pedem a população que denuncie os esconderijos de criminosos. Desde o dia 16, o Disque-Denúncia recebeu 284 denúncias sobre os confrontos da comunidade.

A calma, porém, é aparente. As raízes de episódios como esse são mais profundas e estão ligadas principalmente a como o poder público trata a questão das drogas. Por isso, CartaCapital ouviu quatro especialistas que trabalham a questão das drogas e da violência por diversas perspectivas na tentativa de responder uma única pergunta: como a legalização das drogas ajudaria o Rio de Janeiro? Confira o que eles disseram.

Cristiano Maronna, secretário executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas

Muitos perguntam: estamos preparados para uma legalização? E eu costumo responder que a gente não está preparado é para a proibição. A proibição gera essa situação, de as drogas, apesar de proibidas, circularem livremente. Quem quer sabe onde comprar e onde usar. Além disso, a proibição gera corrupção, violência, superencarceramento e fortalecimento do crime organizado.

Quando você transforma uma atividade que é clandestina em uma atividade regulada, primeiro tem a arrecadação de tributos, o que para um estado que está falido como o Rio de Janeiro seria algo positivo.

Além disso, se a gente pensar pelo lado dos recursos que são utilizados pela segurança pública na guerra contra as drogas, e também para saúde das pessoas – o Rio de Janeiro é um dos centros de referência em medicina para ferimentos causados por armas – isso tudo seria um ganho social enorme, além de se permitir que as pessoas hoje envolvidas no tráfico de drogas tenham uma atividade lícita.

Qualquer modelo regulatório deve levar em conta a inclusão das pessoas. Sem um projeto de desenvolvimento das comunidades hoje envolvidas com o negócio do tráfico não há sucesso. Esse passo precisa ser dado levando em conta a necessidade de incluir essas pessoas.

Isso passa também por uma reforma das polícias, porque é evidente que essa polícia que temos hoje, completamente envolvida com o negócio tráfico de drogas, corrompida, deixa de fazer sentido num modelo regulado.

Ana Clara Telles, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e co-coordenadora do Movimentos: Drogas, Juventude e Favela

Legalização e regulação do mercado das drogas hoje consideradas ilícitas não solucionaria todos os problemas de segurança pública do Rio de Janeiro, mas seriam um primeiro passo no sentido de reconhecer que erramos na forma como escolhemos lidar com essas substâncias.

A ilegalidade do comércio de drogas entrega a grupos armados o controle de um negócio bilionário e alimenta o ciclo de violência e de corrupção associadas a esse mercado ilícito. Legalizar devolve ao Estado a capacidade de regular a produção, a venda e o consumo dessas substâncias de maneira eficiente, respeitando direitos constitucionais.

Mas legalizar e regular não são medidas suficientes se não discutirmos, também, o racismo e a desigualdade que agem, ao mesmo tempo, como causa e consequência da proibição. Em um eventual cenário de legalização, precisaremos prevenir que quem mais sofre com a política de “guerra às drogas” – a juventude negra e pobre, moradora das periferias – seja mais uma vez marginalizado e excluído dos processos de mudança.

Renato Cinco, vereador do Rio de Janeiro pelo Psol e integrante do coletivo da sociedade civil Movimento pela Legalização da Maconha

A proibição das drogas, além de não funcionar em nenhum lugar do mundo, cria um mercado bilionário que é monopólio do crime. Hoje só existe arma pesada com o crime no Brasil por conta da proibição das drogas. Não vejo nenhuma medida emergencial que possa ajudar a enfrentar essa situação de violência que não seja a partir da regulamentação desse mercado. Porque é o que a gente tem visto: é a mesma política sendo implementada, ano a ano, e cada vez com mais intensidade. A gente saiu do PM de Fusca com uma espingarda para a utilização de blindado e a violência só piora.

Eu não acredito que exista uma guerra às drogas, acredito que exista uma guerra aos pobres disfarçada de guerra às drogas. Existe uma história de racismo na origem da proibição. E ao longo do século XX essa estratégia de criminalização sobreviveu. Uma estratégia de criminalização da pobreza que surge racista e hoje é disfarçada de defesa da saúde pública.

A legalização sozinha não vai levar ao paraíso, mas vai suspender o ciclo de encarceramento da juventude pobre. O crime que mais condena é o tráfico, e uma boa parte são pessoas desarmadas e não violentas que trabalham como uma espécie de camelôs das drogas. Essas pessoas, matriculadas na universidade do crime saem da cadeia cada vez mais violentas e articuladas. Quebrar esse ciclo do superencarceramento é uma consequência imediata. E também fazer com que a principal atividade policial deixe de ser a repressão ao tráfico e passe a ser a elucidação dos crimes violentos.

Uma outra questão importante é acabar com essa economia que atrai a juventude para o crime, porque a criminalização das drogas hoje cria o estigma da violência contra os jovens e ao mesmo tempo uma economia que os atrai.

Andrea Gallassi, coordenadora geral do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da Universidade de Brasília (UnB)-campus Ceilândia

A guerra às drogas fracassou. As pessoas sempre usaram drogas ao longo da história da humanidade e seguirão usando. A proibição das drogas e a criminalização das pessoas que usam é uma política adotada na primeira década do século XX com o objetivo, supostamente, de preservar a saúde. Ou seja, se era proibido, esperava-se que não haveria consumo, mas isso nunca ocorreu.

Especialmente na área da saúde, minha área de pesquisa, a regulação pelo Estado de toda a cadeia produtiva da maconha, inicialmente, possibilitaria a aproximação das pessoas que fazem uso problemático de drogas dos sistemas de saúde e de assistência social, o que acabaria com o paradoxo atual de o Estado que busca cuidar é o mesmo Estado que pune. Além disso, diminuiria a estigmatização que um processo penal provoca e a questão das drogas deixaria de ser vista prioritariamente como questão de polícia. Não teríamos o impacto negativo presente na sociedade causado pela criminalização das pessoas que usam drogas. Uma vez proibida, as pessoas passam a ter uma atitude preconceituosa, de rejeição e desejo por punição dos usuários.

A regulação também facilitaria pesquisas científicas, inclusive para aferir a prevalência de uso na população e elevaria o investimento em ações de prevenção, tratamento, redução de danos e reinserção social, reduzindo a repressão. E ainda a regulação viabilizaria o avanço do uso medicinal de substâncias proscritas, como a maconha, no tratamento de doenças, das quais seu uso mostra-se como a melhor possibilidade terapêutica.

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