Como funciona a indústria da Cannabis no Brasil

Fotografia que mostra o bud apical de um pé de cannabis, com pistilos e folhas em tons de rosa por conta da iluminação, e, ao fundo, desfocado, a mão de uma pessoa e diversas outras plantas de maconha. Foto: Paciente de maconha medicinal | Smoke Buddies.

Impulsionada pelo uso medicinal, a Cannabis sai da clandestinidade para se transformar em uma indústria vibrante e potente; a desinformação e o preconceito são os principais entraves ao desenvolvimento do setor canábico. Saiba mais na reportagem de Miriam Sanger e Karina Pastore para a Época

Ainda pouco conhecido pela maioria de nós, o potpreneur tem tudo para ser umas das figuras mais notáveis nos negócios de 2020. Da junção de duas palavras em inglês (pot + entrepeneur), emerge o empreendedor da maconha.

Cinco, seis anos atrás, quando os ventos da liberação começaram a soprar com mais força, nem os mais entusiastas vislumbravam o que se revela agora — a formação de um mercado vibrante e global, discutido nos cinco continentes, por vezes em tom de esperança e euforia, em outros, de preconceito e medo. O Brasil encerrou 2019 com a aprovação, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da venda em farmácias de remédios à base de Cannabis. O cultivo para fins medicinais segue proibido.

A efervescência do ecossistema canábico fica evidente com a análise dos investimentos de venture capital (VC) no setor. Entre 2011 e maio passado, os investidores de risco levaram US$ 1,2 bilhão para o setor. A previsão, porém, era fechar 2019 com US$ 2,5 bilhões.

Mais um sinal do crescimento exponencial da nova indústria? Em 2018, o setor somava US$ 12 bilhões. Nos próximos quatro anos, esse montante deve saltar para US$ 103,9 bilhões, segundo o relatório The Global Cannabis Report, de novembro passado, elaborado pela Prohibition Partners, agência de estratégia e inteligência dedicada ao mercado internacional de maconha, sediada em Londres. Esse valor considera todos os negócios em torno da maconha legal — o uso recreativo, o industrial (sobretudo nos setores de beleza, têxtil e de celulose) e o medicinal.

Mas é graças a seu potencial terapêutico que a erva sai da clandestinidade e se transforma em mercado dos mais promissores. Conforme o mesmo documento da Prohibition Partners, a Cannabis medicinal deve movimentar US$ 62,7 bilhões até 2024.

Cerca de 40 países autorizam a aplicação dos compostos ativos da maconha, os canabinoides, no controle a diversas afeções. Dores crônicas, epilepsia, autismo, Alzheimer, Parkinson, câncer, síndromes genéticas raras… O primeiro medicamento à base de Cannabis aprovado no mundo foi o Sativex, fabricado pelo laboratório inglês GW Pharmaceuticals, fundado em 1998 pelos médicos Geoffrey Guy e Brian Whittle.

Tudo começou quando eles, estudiosos da fitoterapia, notaram que os portadores de esclerose múltipla que faziam uso recreativo de maconha apresentavam melhora nos sintomas da doença. Hoje o nabiximols (princípio ativo do Sativex) está aprovado em cerca de 30 países, e a produção anual de maconha pelo GW Pharmaceuticals gira em torno das 20 toneladas.

O aval da Anvisa para a venda de canabinoides pelas farmácias chamou a atenção para o potencial do Brasil como importante mercado de maconha medicinal. O setor deve movimentar o equivalente a 6,5% do faturamento total da indústria farmacêutica brasileira, segundo Caroline Heinz, presidente da HempMeds Brasil, empresa pioneira na importação de canabinoides.

“Se traçarmos estimativas com base na experiência de países e estados onde já existe a comercialização dos canabinoides, a geração de empregos será outro campo impulsionado. Na Flórida, por exemplo, até o final de 2019, o setor terá sido responsável por criar 15 mil novas vagas de trabalho desde a regulamentação”, diz.

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Os grandes entraves no Brasil para o uso da Cannabis medicinal, defendem médicos, empreendedores e investidores, são a desinformação e o preconceito. Até outubro do ano passado, apenas 4 mil pessoas haviam conquistado na Justiça o direito de importar remédios à base de maconha. Um nada frente aos quase 4 milhões de pessoas que podem se beneficiar por esse tipo de tratamento.

Tem mais. Apenas 1,1 mil dos 450 mil médicos do país estão autorizados a prescrever canabinoides. A expectativa é a de que, com a decisão da Anvisa, o mercado deslanche. “Nunca vi um setor tão reprimido ser regulado”, diz Viviane Sedola, fundadora e CEO da Dr. Cannabis, empresa de conexão entre pacientes e médicos.

Desde o lançamento da empresa, em 2018, já foram cadastradas 7 mil pessoas que buscavam na maconha alívio para males refratários às terapias tradicionais, e 700 médicos dispostos a receitar canabinoides. Agora, em 2020, a CEO coloca no ar o Dr. Academy, plataforma de educação médica em Cannabis.

Aos 35 anos, no final do ano passado a empresária foi eleita uma das 50 mulheres mais influentes no universo global da Cannabis, segundo a revista americana High Times. As vencedoras foram escolhidas entre 7,5 mil candidatas do mundo todo, entre empresárias, pesquisadoras, ativistas e políticas. A fundadora da Dr. Cannabis era a única latino-americana a receber o prêmio High Times Female 50.

Como acontece agora no Brasil, a porta de entrada da maconha legal nos países costuma ser a dos programas públicos de saúde, o que permite a veloz injeção milionária de investimentos. O mercado recreativo, porém, é maior.

“No Colorado, por exemplo, a Cannabis medicinal girava em torno de US$ 150 milhões por ano. Quando a Cannabis recreativa foi legalizada, tornou-se uma indústria de US$ 1,5 bilhão”, conta Or Engler, CEO da Advanced Canna Technologies, especializada em estufas high-tech necessárias para cultivo da Cannabis para fins terapêuticos.

“É também importante dizer que o medicinal é um mercado mais exigente, pois demanda condições específicas no tocante a instalações, equipamentos, tecnologia e mão de obra especializada, o que movimenta toda uma economia ao seu redor. Além disso, é um segmento super-regulamentado, uma vez que produz matéria-prima para a indústria farmacêutica.”

O Canadá, hoje o maior mercado mundial e líder na exportação de plantas e óleos, sedia, segundo a agência Prohibition Partners, seis das dez maiores companhias do setor, e tem hoje cerca de 360 mil pacientes registrados em seu programa médico. Importante lembrar que o país foi o primeiro dos G7 a entrar no rol das nações integralmente canábicas (uso recreativo e medicinal legalizados), em 2018.

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Nos Estados Unidos, a erva está legalizada para uso medicinal em 34 estados, e em 9 para recreativo. Movimentou US$ 6,7 bilhões em 2016 e deve totalizar US$ 20 bilhões em 2021, de acordo com pesquisa do Arcview Market Research. Números importantes em uma indústria cuja matéria-prima ainda está na lista federal de narcóticos, ao lado da heroína e da cocaína. Porém, o líder nas pesquisas científicas da Cannabis medicinal é Israel. O país foi o primeiro a incluir a planta na prática médica, em 1999. Reincluir, já que ela é citada na literatura médica desde 100 a.C., e tem sido cultivada e usada pela humanidade desde 8000 a.C.

Foi nesse pequeno país do Oriente Médio que, nos anos 60, a então vilanizada plantinha recebeu a atenção de um cientista de ponta e recursos governamentais para pesquisa de suas propriedades medicinais. Implantado no país em 2011, o programa médico israelense atende 50 mil pacientes e conta com uma enorme fila de espera.

A ambição dos empresários locais é inversamente proporcional ao diminuto tamanho do país, e são eles a maior fonte de pressão ao governo para a criação de regulamentações que permitirão que o país torne-se um líder na exportação de medicamentos e tecnologia.

Todos esses números, no entanto, são apenas o começo, atestam os potpreneurs, com evidente descontentamento pelo ritmo de crescimento que, apesar de rápido, consideram muito aquém de seu potencial. A explicação mais corrente está no fato de essa indústria não lidar apenas com as dificuldades pertinentes a qualquer novo setor, mas vê-las agravadas pelo estigma, ainda pulsante na maioria dos governos mundiais.

Falta de financiamento é a expressão repetida incansavelmente pelos players do setor, e a causa é sua ainda precária legalidade. Até nos Estados Unidos, todos os produtos à base de Cannabis só podem ser transacionados em dinheiro ou em cartão de débito — a falta de legislação federal impede que os bancos trabalhem com as empresas canábicas.

Além disso, o debate político ainda deixa clara a falta de entendimento quanto à ciência envolvida nessa indústria. “Nesse cenário, as empresas de venture capital, quando investem, o fazem cautelosamente, com pequenos valores”, diz Kfir Kachlon, diretor de gestão de investimento em fundos de Cannabis da VC israelense OurCrowd, que recentemente desembarcou no Brasil.

Assim, com tanta fumaça em torno do tema — e apesar dela —, existem apenas 20 empresas ligadas à Cannabis listadas na Bolsa de Valores de Israel, e outras 15 na Nasdaq, segundo o site Investopedia. Já entre as 1,2 mil startups dedicadas à erva no mundo, somente 121 delas já receberam algum aporte das VCs que estão abastecendo o mercado, entre as quais não figura nenhuma das gigantes tradicionais.

“Interessante notar que está se criando um nicho de fundos de Cannabis”, diz Kfir. A perspectiva é que esse panorama logo seja remodelado, na medida em que novos países regularizem seus mercados. Ou seja, da mesma forma que o setor high-tech encontrou uma saída nos anos 70, o da Cannabis o fará nos anos 2020.

O Vale do Silício, que nasceu por volta dos anos 70, é, segundo Kfir, o exemplo mais próximo do que acontece hoje no universo financeiro frente às oportunidades canábicas. “As primeiras empresas de tecnologia tiveram enorme dificuldade em obter recursos, uma vez que os bancos eram as únicas fontes de financiamento disponíveis, e estes não sabiam, então, como analisar esse tipo de oportunidade”, ele comenta.

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A resposta do mercado financeiro na época veio com a criação das primeiras VCs, as pioneiras no financiamento daquele novo modelo de negócio voltado ao universo online. Kfir vê uma outra similaridade entre os dois enredos. “São negócios intelectuais e que, inicialmente, têm muito pouco a mostrar. E da mesma forma que os investidores não entendiam o que era o desenvolvimento de códigos há 40 anos, hoje eles precisam aprender o que é Cannabis e a ciência que há por trás dela”, explica.

Há cerca de mil espécies de maconha. Cada uma tem sua própria aplicação em termos médicos, segundo dosagens puras ou misturadas. Para complicar um pouco mais, cada organismo reage de uma forma, em função de variáveis como idade, patologia, peso, gênero e até mesmo tolerância. Tomados de menos, os canabinoides não surtem efeito. Demais, também não.

Nessa direção investe a startup Kassi Labs. A empresa desenvolveu uma parafernália bonitinha, que inclui um recipiente de acondicionamento da planta que controla umidade e temperatura acoplado a uma balança, para que o usuário possa monitorar suas doses diárias, e um dichavador plástico, para evitar contaminação do processo feito à mão. A “cereja” da Kassi é um aplicativo que — promete seu fundador, Ido Havilio — permitirá aos usuários compartilhar suas experiências. Ou seja, a mídia social canábica.

“Estamos mesclando dois mundos, o da IoT e o físico, acreditando na força da crowd wisdom. Esse é o elo perdido que faltava e a única forma de superar o desafio da prescrição precisa da Cannabis”, defende Ido. Com enormes olheiras, ele corre contra o tempo e a favor da pressão dos investidores. “Tempo é um elemento que vai contra o empreendedor, que precisa rapidamente colocar seu produto no mercado. Só grandes empresas podem ser medíocres”.

Com a promessa de grandes negócios, a indústria da Cannabis tem atraído personalidades de diversas áreas. O ator americano Jim Belushi, um dos grandes evangelistas desse mercado, cultiva quase 50 acres em sua fazenda no Oregon.

A atriz Whoopi Goldberg fundou a startup Whoopi & Maya, de produtos que aliviam cólicas e dores menstruais. Lembra de Martha Stewart? Ela está lançando uma marca própria de produtos de beleza com Cannabis, em parceria com a gigante canadense Canopy.

Alinharam-se a eles personagens que, até pouco tempo atrás, seriam impensáveis nesse setor. Em Israel, dois ex-primeiros-ministros, Ehud Olmert e Ehud Barak — este último, o militar mais condecorado da história do país e candidato a primeiro-ministro nas últimas eleições (ele ocupou o cargo de 1999 a 2001), anunciaram seu ingresso no board da Univo e da Canndoc, esta presente na Bolsa de Valores de Tel-Aviv.

“Israel é a terra do leite, do mel e da Cannabis”, diz Ehud Barak, citando o “slogan” do país, ao anunciar sua chegada à indústria canábica, no início de 2019. No Brasil, também há um militar que saiu em defesa da Cannabis, o ex-comandante do Exército e ex-assessor do Gabinete de Segurança Institucional do governo Bolsonaro Eduardo Villas Bôas. Sua luta é motivada pela filha, portadora de espondilite anquilosante, doença de natureza inflamatória cujos sintomas são dores crônicas terríveis.

As comprovações terapêuticas da Cannabis, aos poucos, ajudam a diminuir o estigma em torno da planta. E, nesse processo, mães e pais ao redor do mundo tiveram e têm papel preponderante. Uma das principais forças para a aprovação dos medicamentos à base de canabinoides nos Estados Unidos, como conta Raphael Mechoulam, veio de famílias de crianças epilépticas. Ao descobrir os poderes da planta no controle de convulsões até então incontroláveis, pressionaram o governo. Incansavelmente. No Brasil, muitas das organizações autorizadas a importar canabinoides ou a cultivar a erva para fins medicinais surgiram da mesma forma.

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#PraCegoVer: fotografia (de capa) em plano fechado que mostra o topo de um bud de cannabis em cultivo, com pistilos e folhas em tons de rosa por conta da iluminação, e, ao fundo desfocado, a mão de uma pessoa e diversas outras plantas de maconha. Foto: Paciente de maconha medicinal | Smoke Buddies.

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