Como é ser uma criança que usa cannabis medicinal

A cannabis é a única opção de tratamento eficaz em várias doenças, que também afetam crianças e jovens. A Leafly conversou com algumas famílias, nos EUA, que tratam suas crianças com maconha medicinal e revelou seus desafios, que não diferem muito da realidade de muitos pacientes brasileiros. Confira, a seguir, na tradução pela Smoke Buddies

É horrível que haja crianças doentes neste mundo, que alguém tão jovem já possa estar ligado a questões de adultos, como a medicina diária obrigatória. Infelizmente, é uma situação muito real para muitas famílias, e suas complicações são consideravelmente mais acentuadas quando esse medicamento é federalmente ilegal. Mas, devido à natureza extensiva do sistema endocanabinoide (SEC), a cannabis pode ser usada para combater muitas doenças — e muitas dessas doenças podem afetar pessoas de todas as idades, não apenas adultos.

Conversamos com algumas famílias com crianças que são medicadas regularmente com cannabis, com o objetivo de obter uma imagem de como é esse estilo de vida, que tipos de desafios eles enfrentam e como a cannabis transformou suas vidas. Descobrimos histórias impressionantes de melhoria, inovação e duas famílias que farão você desejar que houvesse uma palavra maior para “inspirador”.

Sophie Ryan, tumor cerebral (glioma na via óptica)

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#PraCegoVer: fotografia em primeiro plano de Sophie Ryan, com um sorriso aberto, usando um capelo azul e vestido preto estampado com flores, enquanto segura um rolo de papel, e um fundo de cores azul-claro e branco, com balões amarelos e azuis no topo. Foto: Família Ryan.

Sophie Ryan nasceu em 3 de outubro de 2012, uma menina perfeitamente saudável. Mas antes de completar um ano, uma ressonância magnética diagnosticou um tumor cerebral, um glioma na via óptica, que normalmente não diminui com a quimioterapia. As coisas não pareciam boas. Então, seus pais criaram uma página no Facebook chamada “Orações por Sophie” e uma amiga os colocou em contato com Ricki Lake e Abby Epstein, que estavam filmando Weed the People, um documentário sobre a possibilidade de os óleos de cannabis tratarem câncer em pacientes pediátricos.

Em uma entrevista por telefone com a Leafly, a mãe de Sophie, Tracy, disse que Sophie tomou seu primeiro remédio de cannabis aos 9 meses de idade no filme — uma gota de óleo altamente concentrado de CBD e THC em cima de sua comida antes de iniciar o tratamento da quimioterapia. Como Sophie era apenas um bebê, eles tiveram que observar seus maneirismos para tentar medir a dosagem, mas os únicos efeitos colaterais que eles notaram foram sonolência no início e um apetite mais alto, perfeito para um paciente de quimioterapia.

Após 13 meses de quimioterapia e altas doses de óleo de cannabis, o tumor cerebral “incontrolável” de Sophie desapareceu cerca de 85 a 90%. Tracy compartilhou com a Leafly que até o médico de Sophie, que era originalmente cético em relação à cannabis, teve que admitir que a cannabis deve ter ajudado.

Não é apenas nos resultados que o tratamento com cannabis de Sophie difere da quimioterapia, observam seus pais. Além de ser mais caro, Tracy disse: “A quimioterapia deixa você muito doente, destrói seu sistema imunológico e causa falência de órgãos. Eles perdem o cabelo, ficam feridos por todo o corpo e dentro da boca… Sophie estava tendo queimaduras na quimioterapia quando usava fraldas e tínhamos que usar luvas para não deixar os ácidos da quimio em nossa pele — é isso horrível. E então você tem a cannabis, e ela está fazendo o oposto de tudo isso”.

Felizmente, Tracy não sofreu muito julgamento. Ela trabalha para garantir que seja uma voz confiável, certificando-se de estar no topo da pesquisa e levando Sophie a muitos compromissos de palestras para mostrar a prova de quão saudável ela se sente, apesar da quimioterapia (Tracy disse que Sophie é natural e adora fazer esses eventos, com raras exceções).

Depois de descobrir as maneiras incríveis de cura da cannabis, Tracy decidiu criar seu próprio negócio, a CannaKids. Agora eles estão vendendo tinturas e seringas de alta qualidade em toda a Califórnia e estão trabalhando na expansão para o Canadá e Austrália, além de iniciar uma linha nacional de cânhamo com 6 a 9 canabinoides. Como em muitos casos, a legalização apresentou alguns problemas significativos, com Tracy compartilhando que seus negócios “quase não sobreviveram aos custos e demandas da legalização”. Por exemplo, eles tiveram que mudar o nome por causa das leis sobre o marketing de cannabis para crianças; CKSoul é a nova linha de produtos e o CannaKids continuará a operar como um recurso não comercial.

Eles também criaram uma fundação chamada Saving Sophie, que levantou US$ 60 mil, mas Tracy disse: “Isso é como o trabalho de uma semana em um laboratório. Eles vão precisar de cerca de meio milhão para começar”. E os Ryans também começaram um podcast para promover a conscientização e arrecadar fundos — confira aqui.

Leia: Menina de 13 anos cria empresa para produzir óleo de cannabis para crianças doentes

Coltyn Turner, doença de Crohn

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#PraCegoVer: fotografia em branco e preto de Coltyn Turner, sorridente, agachado com os braços sobre os joelhos e usando uma camiseta de cor escura com o texto em destaque “Remedy”, e um fundo de vegetação. Foto: Família Turner.

Coltyn Turner desenvolveu a doença de Crohn aos 11 anos de idade, após um incidente no qual quase se afogou e levou a uma infecção bacteriana. Nos três anos seguintes, ele tentou vários tratamentos tradicionais, que ele e sua mãe, Wendy, dizem que quase o mataram. Em uma entrevista por telefone com a Leafly, Coltyn compartilhou: “Os medicamentos que eu tentei variam de pílulas que não fazem absolutamente nada a doses que me deram sangramentos nasais, profusamente, por 15 minutos seguidos, e mais um tratamento com infusão de quimio deu-me artrite reumatoide (AR) induzida por medicação e lúpus”.

Eles finalmente experimentaram cannabis. “Quando fui apresentado à cannabis, nas duas primeiras semanas eu já estava fora da minha cadeira de rodas. Eu me senti como uma criança normal de novo” — disse Coltyn.

E ele tem provas das mudanças positivas. “Passei de 22 centímetros de intestino inflamado com lesões na pele, com tudo o que você pode imaginar — inflamação, úlceras, tecido cicatricial, linfoma de granulação —, a um cólon normal; sem doença de Crohn ativa, apenas usando cannabis. Portanto, a cannabis não apenas tratou a dor, o que é importante, mas também cuidou do que estava causando a dor. Também ajuda com a AR e o lúpus que obtive [dos produtos farmacêuticos]”.

Coltyn agora tem 19 anos e usa cannabis há cinco anos. E o Crohn dele está em remissão; eles relatam que quase nunca têm que ir ao médico, hoje em dia. Ele ainda, ocasionalmente, é acometido pelo surgimento dos sintomas, mas é capaz de controlá-los aumentando sua dose de cannabis durante esses períodos. Eles lidam bem com isso atualmente, mas dizem que houve alguns desafios desde o início.

Wendy disse que o principal desafio é administrar e garantir que Coltyn receba a quantidade certa de canabinoides sem ficar ‘alto’. “Nós constantemente perguntamos ‘Como você está, como está se sentindo?'”, ela disse. “Ele deve estar muito, muito cansado disso”.

Mas Coltyn não desiste. “Sim, eu estou, mas ao mesmo tempo é muito importante, porque muitos pacientes realmente não sabem a sua dose, especialmente no início do tratamento com cannabis, e você tem que alterá-la com bastante frequência”, disse ele. “Quando me mudei do Colorado para iniciar o tratamento com cannabis, mantivemos um diário e anotamos tudo o que acontecia: o que eu comi naquele dia, quantas vezes fui ao banheiro — se eu tivesse mascado um chiclete, anotava. Infelizmente, essa é a única maneira de desenvolver um regime para as pessoas, por tentativa e erro, tentando tudo sob o sol até encontrar algo que funcione melhor para você”.

Wendy compartilha que havia algumas curvas de aprendizado em seu caminho. “Às vezes nós erramos. Por exemplo, agora sabemos que nunca se deve dar THCV ao paciente de Crohn”.

Coltyn acrescenta: “O que sabemos sobre o THCV é que ele é um inibidor de apetite. Para alguém com uma síndrome que causa perda de apetite, esse não é um bom canabinoide. Mas não descobrimos até que eu perdi 4,5 kg. Essa é a luta por não haver pesquisas nem nada”.

No que diz respeito à medicação durante a escola, Coltyn disse: “Felizmente, fui educado em casa a vida toda, mas há crianças que estão tendo problemas para ter remédio na escola. Na maioria das vezes, eles não têm permissão para tê-lo a 60 ou 300 metros de uma escola. Há crianças com convulsões que frequentam escolas públicas e, se precisam de uma emergência médica, precisam que seus pais venham à escola, buscá-las, sair do campus, administrá-lo e depois trazê-las de volta”.

Wendy disse que a legalização afetou esse problema negativamente. “Esses estados recém-legalizados emergem e criam questões de regulamentação em escolas com leis de tolerância zero. Coltyn frequentou a escola por 38 dias e nós o tiramos porque não conseguimos lidar com isso. Não existe uma opção viável, nem mesmo na faculdade”.

Ela acrescentou que há um aluno processando a escola por causa dessa questão e disse que é uma loucura que os produtos farmacêuticos, que podem matá-lo se abusados, sejam permitidos na escola, mas a cannabis não.

Wendy disse que, sem o comércio interestadual, a medicação também pode ser uma tarefa desafiadora na obtenção de cuidados médicos. “Toda pessoa que tem um cartão médico é prisioneira desse estado”, disse ela. “A maioria dos médicos de Coltyn está do outro lado das fronteiras estaduais no Missouri e, quando atravessamos essa fronteira, Coltyn é ilegal. E se ele quebrasse o braço ou algo assim, eu teria que dizer a eles que ele é medicado com THC. E não poderia lhe dar os remédios para a doença de Crohn se ele tivesse que ficar no hospital por esse braço quebrado por mais de um dia. Então, lá vamos nós, em uma crise com a doença de Crohn”.

Quando perguntados se já enfrentaram muitos julgamentos por terem medicado Coltyn com cannabis, eles relatam com satisfação que não. Tracy compartilhou que provavelmente tem muito a ver com ela ser uma mãe intimidadora, pronta para entrar nos fatos e nas estatísticas com médicos e outros profissionais médicos, conforme necessário.

E a defesa deles por cannabis não termina aí. A Coltyn Turner Foundation está focada em pesquisa e angariação de fundos para fazê-lo — seu primeiro projeto é uma pesquisa com pacientes de Crohn que usam cannabis, que visa obter dados sólidos sobre como está funcionando em seus sistemas e que podem ser usados ​​como um recurso para outros pacientes. “Eu senti que era importante”, disse Coltyn. “Todo o tempo eu abordo médicos e pacientes que não sabem que a cannabis funciona, e a única coisa que eles dizem é ‘não há pesquisas'”.

Sua mãe acrescentou que essa não é a verdade: “Um dos problemas que temos nos estados é o nosso ego, especialmente com esses médicos que dizem ‘não há pesquisa’, apenas porque a pesquisa não vem dos EUA, que precisa passar pela DEA e outras agências de fiscalização”, as quais, é claro, não são grandes fãs de aprovar estudos com medicamentos do Anexo I — um dilema irritantemente circular. Mas Coltyn está pronto para o desafio.

“Quando o governo não faz algo certo, o povo precisa fazer isso sozinho”, disse ele. “Prefiro estar ilegalmente vivo do que morto legalmente”.

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia em primeiro plano de Coltyn Turner, com um sorriso fechado e usando uma camiseta cinza-escuro estampada com o texto “All Natural Healthcare”, em verde e branco, e o desenho de uma folha de maconha verde, e, ao fundo, um muro de tijolos aparentes. Foto: Família Turner.

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