Como a maconha medicinal e air guitar enviaram um veterano negro para a prisão

Fotografia de rosto de Sean Worsley (preso por maconha medicinal) com um boné camuflado em tons de verde e parte da bandeira dos EUA ao fundo. Imagem: cortesia de Sean & Eboni Worsley para o Leafly.

Sean Worsley serviu nos EUA em um dos trabalhos mais perigosos do mundo, adquiriu estresse pós-traumático, após uma lesão cerebral, e hoje está preso e condenado a cinco anos de regime fechado por trazer consigo um frasco de cannabis medicinal. Entenda o caso no artigo do Leafly, traduzido pela Smoke Buddies

Maconha medicinal agora é legal em 35 estados dos EUA. Alguma forma de cannabis — mesmo que apenas CBD — é legal em 47 estados. Pesquisas em todo o país mostram que mais de 90% dos estadunidenses acreditam que os pacientes devem ter o direito de usar cannabis medicinal sem medo de prisão e encarceramento.

Então, por que Sean Worsley, 33 anos, veterano da guerra do Iraque e condecorado com a Purple Heart, está trancado em uma prisão do Alabama por cinco anos? Ele está lá por causa da música, da maconha medicinal e da armadilha racista conhecida como proibição da cannabis.

Ele está lá por que se atreveu a tratar seu TEPT — resultado de seus 14 meses trabalhando com um esquadrão antibombas em uma zona de guerra — com maconha medicinal e cometeu o erro de dirigir pelo Alabama com o medicamento no carro.

Tudo começou com uma visita de família

A história de Worsley começou inocentemente.

Quatro anos atrás, no verão de 2016, ele e sua esposa Eboni estavam visitando sua família no Mississippi. Eles decidiram fazer uma viagem de dez horas para visitar a avó de Worsley na Carolina do Norte. Ela estava desabrigada por causa de um furacão e ele planejava ajudar a reconstruir sua casa.

Dirigindo-se para o leste pela estrada 82, os Worsleys chegaram ao posto de gasolina Jet Pep em Gordo, Alabama, uma pequena cidade a cerca de 30 quilômetros de Tuscaloosa. Passava um pouco das 23 horas do dia 15 de agosto de 2016. Enquanto abastecia, a música saiu do carro de Worsley.

A música alta atraiu a atenção de Carl Abramo, um policial local de Gordo. Abramo investigou. O porquê de ele ter investigado não está claro. Tocar uma melodia enquanto bombeia gasolina ainda não é crime no Alabama. Mas talvez isso conte como comportamento suspeito em Gordo.

Segundo o relatório posterior da Abramo, ele “observou um negro sair do veículo do lado do passageiro. Eles pararam em uma bomba e o homem negro começou a tocar ‘air guitar’, dançar e balançar a cabeça. Ele estava rindo, brincando e olhando para o motorista enquanto fazia tudo isso”.

Tocando air guitar enquanto negro

Baseado em sua observação aguçada de um homem que desfrutava de uma viagem em família com sua esposa, o policial Abramo se aproximou de Sean Worsley e solicitou uma busca em seu carro.

Novamente: Por quê? Isso não está claro. Abramo alegou sentir cheiro de maconha, mas essa afirmação — que é impossível de provar ou refutar — há muito tempo é usada pela polícia como um pretexto falso para parar e assediar pessoas de cor. Em alguns estados que legalizaram o uso medicinal, na verdade, o “cheiro de erva” foi desqualificado como causa provável de investigação policial.

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Aqui está um detalhe importante na América: Sean Worsley, o veterano militar, é preto. Carl Abramo, o policial de uma pequena cidade do Alabama, é branco.

Worsley consentiu a busca, acreditando que não tinha nada a esconder.

Na verdade, ele tinha algo a esconder. Worsley é um veterano deficiente com uma lesão cerebral traumática. Ele usa cannabis medicinal para gerenciar seu TEPT e aliviar sua dor nas costas.

Servindo em um esquadrão ‘Hurt Locker’

Durante seus cinco anos nas forças armadas, Sean Worsley não se limitou a apenas cumprir seu tempo. Ele trabalhou em um dos empregos mais difíceis e perigosos do mundo. Worsley passou 14 meses designado para um esquadrão antibombas no Iraque, trabalhando em ambientes mortais semelhantes aos retratados no filme vencedor do Oscar The Hurt Locker.

O trabalho envolvia longos períodos de tédio pontuados por missões aterradoras para desmontar dispositivos explosivos improvisados ​​(IEDs). Worsley e seu esquadrão salvaram muitas vidas, mas também viram soldados morrerem em explosões horríveis.

Em uma missão, Worsley ficou inconsciente e teve que ser arrastado para fora de seu veículo para um local seguro. Isso levou a uma lesão cerebral traumática e pode ter exacerbado o TEPT.

Uma vez nos EUA, Worsley tratou seus ferimentos e seu TEPT com uma lista cada vez maior de produtos farmacêuticos prescritos pelos médicos da Administração de Veteranos. Eventualmente, ele se voltou para a cannabis medicinal, que é legal em seu estado natal, Arizona, e se desmamou ele mesmo das pílulas.

Um dos muitos veteranos que recorrem à maconha medicinal

Eric Goepel, fundador e CEO da Veterans Cannabis Coalition, disse que a experiência de Worsley é comum entre os guerreiros feridos da América.

“Como centenas de milhares de veteranos feridos em combate, o tratamento que [Worsley] recebeu foi dito para consumir coquetéis de produtos farmacêuticos tóxicos e viciantes, variando de antipsicóticos e antidepressivos a opioides e estimulantes, pelo resto da vida”, disse Goepel ao Leafly“Desgastado, sob o peso de um regime de pílulas que ameaçavam matá-lo, ele se voltou para a cannabis como alternativa. Sean se junta a mais de 20% da comunidade de veteranos que usam cannabis para gerenciar suas condições”.

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A maconha medicinal de Worsley era perfeitamente legal no Arizona, mas absolutamente ilegal no Alabama. O policial Abramo encontrou a medicação de Worsley no banco de trás, devidamente rotulada em um frasco de comprimidos. Worsley explicou que era um veterano deficiente e mostrou a Abramo seu cartão de maconha medicinal do Arizona.

O policial disse a Worsley que seu cartão não era válido no Alabama, onde a maconha medicinal permanece ilegal. Abramo prendeu Sean e Eboni. Foram levados para a cadeia do condado de Pickens, onde permaneceram seis dias.

Mas isso seria apenas o começo do pesadelo de Sean Worsley.

Proibição da cannabis no Sul

O Sul dos EUA tem sido uma das últimas fortalezas da proibição da cannabis. Nos últimos meses, porém, o progresso começou a chegar. A Virgínia descriminalizou oficialmente a maconha e abriu seu programa de cannabis medicinal no mês passado. A Louisiana começou a vender cannabis a pacientes em dispensários. Em novembro, os residentes do Mississippi votarão em uma iniciativa estadual para legalizar a cannabis medicinal.

Mas o Alabama continua preso à guerra às drogas do século passado. Como Leah Nelson, diretora de pesquisa do Alabama Appleseed Center for Law & Justice, explicou recentemente:

“A posse pela primeira vez [de maconha] é acusada de contravenção se o oficial que efetuou a prisão achar que foi para uso pessoal; todas as instâncias subsequentes de posse são crimes. Se o oficial acreditar que a maconha é para ‘outro uso que não seja pessoal’, então a posse de qualquer quantia pode ser cobrada como crime, mesmo que seja a primeira vez que um indivíduo seja preso por posse”.

Em outras palavras, toda a trajetória da vida e da liberdade de uma pessoa pode basear-se na crença do policial de que a cannabis em questão é ou não simplesmente para uso pessoal.

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Um policial decide o destino de um homem

Apesar do cartão de maconha medicinal de Sean Worsley, e de seu serviço documentado na guerra do Iraque e das lutas contra o TEPT, a lei estadual do Alabama permitiu que um policial de Gordo, com uma população de 1.750 habitantes, retratasse Worsley como um traficante de drogas movendo uma grande quantidade com a intenção de vender — e não um veterano militar ferido em férias com a família, usando maconha medicinal legal para gerenciar seu TEPT.

Abramo acusou Sean Worsley por posse de maconha para outro uso que não pessoal, um crime. Ele também acusou a esposa de Worsley, Eboni, pelo mesmo crime, embora as acusações contra ela tenham sido retiradas mais tarde.

O casal foi libertado sob fiança após seis dias de prisão. Sean e Eboni voltaram às suas vidas no Oeste, aguardando notícias sobre as próximas etapas legais de Sean no Alabama. Um ano se passou e então seu agente de fiança (bail bondsman) ligou para avisar que o juiz responsável pelo caso havia revogado cauções em todos os casos que ele administrava. (Não está claro o porquê.) Os Worsleys correram de volta para o Alabama para evitar serem acusados ​​de não comparecer ao tribunal.

Uma vez lá, as autoridades do tribunal do condado de Pickens trancaram Sean em um quarto separado de Eboni. Um acordo de barganha foi apresentado a ele. O acordo incluía 5 anos de liberdade condicional, tratamento para drogas e milhares de dólares em multas e custas judiciais. As autoridades disseram a Worsley que se ele não assinasse o contrato, ele ficaria preso por possivelmente meses. Ele assinou.

Mas Sean Worsley não tinha ideia do tipo de pesadelo judicial que ele estava assinando.

Uma acusação criminal por maconha medicinal

Em um esforço para concluir os requisitos de seu acordo, Worsley visitou um centro médico da Administração de Veteranos (VA) no Arizona para ser avaliado quanto ao tratamento para drogas. Mas o VA recusou-se a inscrevê-lo — porque a maconha medicinal é legal no Arizona, e os médicos não viram evidências de que Worsley abusou da droga.

“Sr. Worsley relata o consumo fumado de cannabis para fins médicos e possui documentação legal para apoiar seu uso e, portanto, não atende aos critérios para um distúrbio de uso de substâncias ou à necessidade de tratamento para abuso de substâncias”, disse o relatório do VA Mental Health Integrated Specialty Services.

Impedidos pelas acusações de drogas que pairavam sobre eles, Sean e Eboni lutaram para encontrar trabalho. No início de 2019, eles solicitaram ajuda de um programa do VA que auxilia veteranos em situação de rua. Naquele verão, porém, o VA notificou Sean de que sua assistência seria interrompida por que o Alabama emitiu um mandado de fuga para sua prisão. Aparentemente, ele havia perdido uma aparição no tribunal do condado de Pickens — da qual ele não tinha conhecimento — e o promotor local emitiu o mandado.

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Parada de trânsito no Arizona

A luta continuou. No início deste ano, Sean Worsley foi detido pela polícia do Arizona por uma pequena infração de trânsito.

De acordo com o relatório de Leah Nelson:

“Os policiais que o pararam notaram que [Worsley] estava aterrorizado. Eles perguntaram sobre o porquê. Segundo Eboni, ele contou tudo: sobre seu TEPT, sua lesão cerebral traumática, seu cartão vencido [de maconha medicinal], o mandado pendente do Alabama. Os policiais disseram para ele não se preocupar; o Alabama nunca o extraditaria por um pouco de maconha. Estava tudo bem”.

Mas, quando telefonaram para o Alabama, os policiais pediram a extradição de Worsley de volta ao condado de Pickens.

Quando a polícia do Arizona deu a notícia, Worsley entrou em pânico. Ele correu. Ele não foi longe — ele caiu e os policiais o levaram para a cadeia.

Endividamento pesado

Eventualmente, as autoridades estaduais do Alabama transportaram Worsley para o Sul Profundo (Deep South), a um custo de US$ 4.345 — pelo qual eles o cobraram.

Aumentar os custos dos tribunais e as ‘taxas de trânsito’ para as pessoas que já lutam para fazer face às despesas se tornou uma tática notoriamente cruel em muitos estados. O ônus da dívida da prisão é algo que algumas pessoas nunca superam — e pode manter muitas pessoas anteriormente encarceradas, que cumpriram pena, inelegíveis para votar. (A ACLU tem alertado para o renascimento das “prisões de devedores” abolidas originalmente há quase dois séculos atrás, e o centro jurídico Alabama Appleseed publicou um extenso relatório examinando como essas multas e taxas geram encarceramento, minam a segurança pública e ampliam a diferença de riqueza racial do Alabama.)

Depois de se familiarizar novamente com a prisão do condado de Pickens, Worsley entrou no tribunal para ouvir seu destino determinado por um juiz local. Em 28 de abril de 2020, o juiz revogou sua liberdade condicional e o sentenciou a cinco anos no sistema penitenciário estadual do Alabama.

Cinco anos de prisão — por dirigir pelo Alabama com um frasco de maconha medicinal. E dançar em um posto de gasolina enquanto negro.

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Medicamento legal, estado ilegal: pacientes presos

A história de Sean Worsley ilustra como uma única prisão por cannabis pode atrapalhar a vida de uma pessoa. Não é apenas a própria prisão. É a maneira pela qual a pessoa acusada fica presa em um sistema de justiça que muitas vezes prende pessoas de cor e pessoas com menos recursos.

Sarah Gersten, diretora executiva do Last Prisoner Project, uma organização de defesa que trabalha para libertar as vítimas da guerra às drogas, vê muitos Sean Worsleys em seu trabalho.

“Sabemos que a maconha não é uma droga de passagem, mas é uma ofensa de passagem”, disse Gersten ao Leafly“A história de Sean é a emblemática de como uma simples acusação de porte, especialmente para um negro nos Estados Unidos, pode facilmente levá-lo a um sistema que quase garante que continuará a reincidir”.

“Encarcerar os veteranos de nossa nação por sentenças de anos não é a solução”, acrescentou. “O caso de Sean serve como um lembrete severo de que, sem recursos de saúde mental, cuidados de longo prazo e acesso a medicamentos seguros e eficazes, aqueles que serviram neste país correm o risco de sofrer o impacto de um sistema injusto, onde até os transgressores de baixo nível estão destinados a fracassar”.

Além da injustiça, está o sacrifício que Worsley deu ao seu país: anos de serviço militar que lhe custaram a saúde e o bem-estar. O serviço de Worsley na guerra do Iraque levou a TEPT e lesão cerebral, que ele tratou com um medicamento legal em seu estado natal. Ele seguiu todas as regras. Ele cometeu apenas um pequeno erro: levou o remédio com ele enquanto viajava. E agora ele está prestando um tipo diferente de serviço: cinco anos difíceis em uma prisão do Alabama.

A governadora Kay Ivey pode acabar com essa injustiça

Em um caso como esse, um governador de estado pode oferecer justiça e clemência apropriadas. A governadora do Alabama, Kay Ivey, é uma republicana conservadora, uma posição política historicamente associada à antipatia pela legalização da cannabis. (Embora isso esteja mudando rapidamente.) Mas Ivey demonstrou a capacidade de manter a mente aberta em relação à maconha medicinal.

No ano passado, ela assinou o projeto de lei 236 do Senado, que legalizou o óleo de CBD para um número extremamente limitado de pacientes. A medida também estabeleceu um comitê para analisar um programa mais abrangente de maconha medicinal, com a intenção de propor uma medida de legalização apropriada para o Alabama.

À medida que mais atenção é atraída para o caso de Worsley, as rodas da justiça podem começar a girar. Em casos semelhantes — mais notoriamente o de Bernard Noble, outrora condenado a 13 anos em uma prisão da Louisiana pela posse de dois baseados — anos de trabalho de advocacia resultaram em libertação antecipada.

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia de rosto de Sean Worsley com um boné camuflado em tons de verde e parte da bandeira dos EUA ao fundo. Imagem: cortesia de Sean & Eboni Worsley para o Leafly.

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