Cannabis medicinal: burocracia versus a dor de quem precisa

Fotografia do bud apical de uma planta de cannabis, repleto de pistilos cor creme, com a luz incidindo obliquamente da direita, em fundo marrom-claro. Foto: kēvïïïn grashüpfer | Unsplash.

Para além da burocracia, a falta de conhecimento e o preconceito, inclusive da classe médica, criam uma ampla barreira para a utilização da cannabis medicinal no Brasil. Saiba mais no artigo de Ailane Araújo* para o Estadão

Poderia começar esse artigo lembrando que o plantio da cannabis para o uso medicinal e científico no Brasil está previsto desde 2006, por meio da lei 11.343, aprovada no governo Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar de aprovada, a regulamentação pouco avançou ao longo desses anos. E aqui poderia citar alguns motivos pelos quais é preciso esse avanço. Antes, no entanto, prefiro falar do cultivo da soja no Brasil.

Com esse grão, valiosíssimo no mercado e cuja saca de 60 quilos é cotada a aproximadamente R$ 160,00, é possível se obter leite, óleo, farelo para uso em ração animal, farinha, tofu (alimento parecido com queijo), hambúrgueres, manteiga e outros produtos. Mas, perceba: o grão é único, com várias utilizações.

Assim como o grão da soja pode ser usado para muitas finalidades o mesmo ocorre com a planta cannabis que, antigamente, era muito usada pela indústria têxtil e permite uma fabricação de mais de três mil produtos, entre os quais estão roupas, sapatos, óleos, biocombustíveis e componentes para carros, entre outros.

Mas o que levou a cannabis ser intitulada de maconha e conhecida somente pelo efeito “do barato”? Primeiro é preciso explicar que o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC) são substâncias encontradas em concentrações diferentes nos quimiotipos da planta Cannabis sativa — na maconha o que está presente em altas concentrações é  o tetraidrocanabinol (THC), responsável pelos efeitos alucinógenos [e medicinais].

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Agora quando falamos em tratamento medicinal, o foco é utilizar os princípios medicinais da planta cannabis. Entenda que aqui é quase como falar que usarei a soja para farelo e não para óleo.

Lamentavelmente, me parece mais fácil aceitar a cannabis como planta da maconha a realmente estudá-la e aproveitá-la na medicina. A discriminação se dá justamente pela falta de conhecimento de como essa planta é uma das poucas que atua diretamente no nosso organismo, ajudando a promover o equilíbrio dos diversos sistemas do nosso corpo. Ela foi uma das primeiras a serem domesticadas, utilizada para agricultura e para fins alimentares, mas com a história veio o capitalismo, onde o lucro se sobrepõe ao bem-estar em termos de saúde.

A cannabis é uma planta que cresce muito rápido e em seis meses pode ser aproveitada. Além disso, ela devolve ao solo grande parte do que dele extrai, além de retirar metais pesados e toxinas, exercendo um efeito de limpeza.

Com o tempo veio a perseguição às drogas e a cannabis, infelizmente, passou a ser vista apenas com a finalidade da maconha e as pessoas precisam entender que nem toda cannabis é maconha. E foi por isso que fiz a relação com a soja.

Enquanto as autoridades brasileiras não enxergarem a cannabis como uma planta medicinal, milhares de pessoas continuarão sofrendo com os efeitos de doenças como câncer, depressão, ansiedade, Parkinson e Alzheimer, entre outras. São mais de 350 tipos de patologias que podem ser tratadas com produtos à base de cannabis medicinal, amenizando o sofrimento de idosos, adultos e crianças.

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A importação de produtos à base de cannabis medicinal foi autorizada pela Anvisa em 2014, época em que o processo era demorado e caro. Hoje, ele é mais ágil, mais acessível e, além disso, permite que o paciente acione, se necessário, o Governo Federal ou seu plano de saúde.

O caminho menos doloroso para quem quer fazer um tratamento com cannabis medicinal — e todas as pessoas têm e devem exigir o direito a esse tratamento — seria o plantio em larga escala no Brasil para fins medicinais. Dessa forma, os produtos seriam produzidos por laboratórios brasileiros, o que reduziria os custos desses aos pacientes.

Note que cada país tem a sua legislação: nos Estados Unidos, por exemplo, os estados têm as suas leis, existem os dispensários e os médicos especializados. No Canadá, os dispensários vendem somente a planta e os produtos, receitados pelos médicos, são comprados por meio de site. No Uruguai, a cannabis medicinal pode ser plantada em casa, no limite de até seis pés da planta em estado de floração, desde que o consumo seja próprio e não para comercialização.

É preciso considerar que, para além da burocracia, a falta de conhecimento e o preconceito, inclusive da classe médica, criam uma ampla barreira para a utilização da cannabis medicinal no Brasil. Em números absolutos, desde o início da autorização, em 2014, somente 20 mil pacientes foram autorizados pela Anvisa a fazer uso de produtos com cannabis medicinal, sendo esses prescritos por aproximadamente 300 médicos ativos — o número máximo foi de mil médicos, incluindo prescrições feitas apenas uma vez.

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Eu que atuo na medicina integrativa, que conheço os benefícios e o poder da cannabis medicinal, que acredito numa visão integral do indivíduo e trabalho com a medicina da saúde focada mais na individualidade do ser e menos nas doenças e medicamentos, sei que é preciso romper, de uma vez por todas, as barreiras da ignorância e do preconceito.

Afinal, a cura se dá a todo momento: na mudança do estilo de vida, na escolha pela nutrição completa de seu organismo, na superação de hábitos negativos e, acima de tudo, na superação de crenças limitantes.

*Ailane Araújo, fundadora e diretora do Centro Brasileiro de Referência em Medicina Canabinoide (CBRMC), é médica integrativa, professora do primeiro curso de medicina canabinoide e uma das primeiras prescritoras de cannabis medicinal no Brasil.

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#PraCegoVer: fotografia do bud apical de uma planta de cannabis, repleto de pistilos cor creme, com a luz incidindo obliquamente da direita, em fundo marrom-claro. Foto: kēvïïïn grashüpfer | Unsplash.

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