Bob Burnquist quer liderar movimento para maconha deixar de ser doping

Fotografia em primeiro plano de Bob Burnquist vestindo camiseta em tons de azul e equipamentos de segurança, como um capacete branco, e segurando o skate e uma garrafa de água em uma mão, enquanto levanta a outra e faz sinal de positivo; e um fundo desfocado, onde pode-se ver parte do logo da Red Bull.

Bob Burnquist, presidente da Confederação Brasileira de Skate, pretende montar comissão e ir até a Wada para pedir a retirada da maconha da lista de doping. As informações são da ESPN.

Como presidente da Confederação Brasileira de Skate, Bob Burnquist já deu recado direto aos atletas da seleção nacional que vão representar o país na Olimpíada de Tóquio, no ano que vem:

“Não usem cannabis ou qualquer coisa derivada dela durante a competição”.

No que diz respeito ao que acha dessa regra, Burnquist já é bem menos lacônico – tanto com relação à questão comportamental quanto ao uso médico da substância.

“É um absurdo. Já há milhares de estudos e medicamentos analgésicos com THC (substância psicoativa da cannabis) que mostram um risco muito menor para o consumidor do que os opioides”, diz ele. “É uma ironia e uma hipocrisia o THC ser proibido e o opioides não. O que temos de amigos viciados em analgésicos do tipo…”, disse ele ao ESPN.com.br.

Opioides são os medicamentos produzidos à base de ópio, como a morfina e a codeína. Drogas como a heroína também são produzidos a partir de ópio.

Medicamentos com canabidiol, outro princípio ativo da cannabis, mas que não “dá barato”, já não constam da lista da Wada, Agência Mundial Antidoping, na sigla em inglês.

Skate e dor andam juntos. É praticamente impossível praticar o esporte sem quedas e lesões. E, onde há dor, há analgésicos. Por conta disso, nas suas peles de dirigente e de um dos praticantes mais célebres do skate em todos os tempos, Bob quer mudar a história.

“Quero liderar os estudos, montar uma comissão e fazer um movimento de ir à Wada debater isso”, afirma. “É evidente que (a Cannabis) não melhora performance, mas melhora, sim, e muito, a sua dor, sem precisar da p… de um opioide”, brada.

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“É uma oportunidade que o skate está tendo de liderar um movimento, mantendo assim, inclusive, a nossa identidade de contestar – além de não nos matarmos com drogas muito mais perigosas”, afirma.

Bob não defende assim apenas o direito de “dar um dois”, como designa-se na gíria o ato de fumar um cigarro da droga, o popular “beque” ou “baseado”. Mas sim de permitir que os atletas possam usar remédios que não lhes prejudiquem tanto.

“Não é preciso fumar, há outros modos. O atleta tem que preservar seu pulmão. Há óleos, pomadas. Mas enquanto o THC for proibido, não há o que se fazer em tempo de competição”, conforma-se.

“Assim como aconteceu com muitas outras questões, o skate pode mais uma vez ser vanguarda numa questão”, diz. “Skatista não é halterofilista, que tomaram anabolizante por anos. Nosso maior problema é a maconha? Pô, não dá nem para comparar”, diz.

Mas a luta de Bob Burnquist promete ser inglória.

TODO MUNDO FUMA?

Atletas profissionais fumam maconha. E a primeira frase deste texto também seria verdadeira fosse sua primeira palavra “engenheiros”, “jornalistas”, “médicos”, “farmacêuticos”, “professores”, etc.

Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC, em inglês) em seu World Drug Report 2014, 4,9% da população mundial com idades entre 15 e 64 anos revelou ter consumido a droga em 2012, ano base das análises desse que é o mais recente grande estudo global sobre o hábito.

No Brasil, ainda segundo dados do estudo, o índice fica em 8,8% – ou cerca de 5,63 milhões de pessoas, tomando-se por base o número de 64 milhões de habitantes no País dentro desta faixa etária, de acordo com o último senso populacional do IBGE, de 2010.

Mas atletas não podem usar maconha, devido ao THC, a substância psicoativa da droga, responsável pela alteração do estado mental, do relaxamento e da analgesia promovidos pelo consumo. Ao menos, não em épocas em que estejam disputando competições.

Muito embora a droga não pareça trazer qualquer benefício à performance esportiva – já que relaxa a musculatura em excesso, causa sonolência, diminui reflexos e, uma análise menos científica, “desacelera os indivíduos”-, a substância está listada pela Wada como proibida, ao lado de anabolizantes, esteroides e estimulantes em geral.

Mas isso faz algum sentido? Quanto da proibição tem sustentação científica? Quão mais danosa que o cigarro e o álcool – ambos fora da lista da Wada – a cannabis pode ser, por exemplo, para um esportista? Quanto dessa proibição pode ser fruto de preconceito?

ANONIMATO

A reportagem conversou com três atletas, de diferentes modalidades, que declararam fazer uso social da droga, inclusive com colegas de profissão, em momentos de lazer. Destes, apenas Bob Burnquist aceitou identificar-se.

Os outros dois não quiseram manifestar-se com seus nomes. Tampouco quiseram mencionados nesse texto os esportes que praticam/praticavam nem seus gêneros, preocupados com retaliações ou suspensões que eles ou seus pares pudessem sofrer por revelarem o hábito. Um aspecto, porém, todos confirmaram: consumir cannabis nunca trouxe qualquer vantagem competitiva a eles.

“O atleta tem uma imagem de herói, de exemplo, que eu não gostaria de ver desconstruída”, disse um destes atletas, negando-se a tomar parte na reportagem. Tal frase evidencia de cara uma das facetas atreladas ao consumo de cannabis: o preconceito com o usuário.

Nisso, o atleta não é diferente do usuário pertencente a outras classes profissionais. O termo “maconheiro”, que descreve o usuário da cannabis, é um xingamento. Algo que não se vê em paralelo com o consumidor de cigarros, por exemplo. Ninguém é xingado de “tabaqueiro”.

“Essa associação vem dos anos 1930 e é também racial”, explica o pós-doutor, historiador e sociólogo Jean Marcel Carvalho França, autor de A história da maconha no Brasil (Editora Três Estrelas, 2015).

Segundo França, é difícil remontar à época da chegada do hábito de fumar a droga ao Brasil para delimitar quem a trouxe. Mas convencionou-se acreditar que ele desembarcou na costa brasileira com os negros escravos, embora fosse hábito de marinheiros de diversas nacionalidades.

“Devido à herança escravocrata, no Brasil, a maconha foi associada à vagabundagem. Os senhores achavam que os escravos se recusavam a trabalhar e se rebelavam porque usavam cannabis, e não porque o tratamento dispensado a eles era desumano”, explica ele.

Listado como substância proibida pela Wada até bem pouco tempo, o álcool, por exemplo, passa quase incólume no que toca ao seu consumo social como algo para se envergonhar.

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Felipe Melo, atual jogador do Palmeiras, orgulha-se de tomar vinho e entender do assunto. O ex-goleiro Marcos, ídolo palmeirense e pentacampeão mundial em 2002 com a seleção, inclusive assina uma linha de cervejas artesanais.

Aloísio Chulapa, campeão mundial com o São Paulo, em 2005, cunhou o termo “danone” para se referir à sua cerveja habitual. E até o técnico Tite da seleção brasileira fala abertamente sobre seu hábito de sorver “caiporas”, como ele apelida caipirinhas, o drink oficial do Brasil, em momentos de relaxamento.

Foi nos anos 1930 que começou-se com a ideia de que o usuário de maconha estava fadado a colecionar insucessos devido ao consumo e tornar-se marginalizado. “Esse aspecto é o que vejo como mais difícil de desassociar, pois é algo muito presente, ainda mais agora, nessa época de acirramento das disputas políticas e ideológicas”, diz França.

No Uruguai, uma das duas nações a liberarem irrestritamente o uso da cannabis para cidadãos adultos – o Canadá é a outra – o governo fez um esforço enorme para desassociar a imagem do consumidor da de um fracassado.

“A campanha era educacional: mostrava engenheiros, médicos, banqueiros, todos bem-sucedidos, declarando-se usuários. E isso certamente fez mudar a questão preconceituosa por lá”, diz França.

Mas, preconceito à parte, o que a medicina diz sobre a maconha no que toca ao desempenho esportivo?

TRÊS PILARES

Rubens Sampaio é médico do esporte e trabalhou por 20 anos em clubes de futebol de ponta, como Palmeiras e São Caetano. Ao longo desse período, conheceu atletas que usavam maconha nas férias e até teve contato com jogadores que pediram afastamento de determinados jogos por consumo ocasional de drogas sociais.

Tanta vivência no esporte permite que ele ateste que a maconha não traz benefício algum de desempenho para jogadores de futebol.

“A cocaína, que causa várias suspensões anualmente, também não, porque seu efeito se esvai muito rapidamente”, explica.

“Na minha visão, inclusive, drogas sociais, como maconha e a própria cocaína não deveriam gerar suspensões”, diz. “Se não geram vantagem competitiva e a questão é o exemplo, então, que esses atletas prestem serviços para a sociedade”, diz.

Sampaio, no entanto, explica que a Wada considera três pilares na hora de incluir uma droga na lista de substâncias proibidas:

  1. Tem o potencial de melhorar ou de fato melhora o desempenho esportivo;

  2. Representa um risco potencial ou real à saúde do atleta;

  3. Viola o espírito esportivo – critérios quanto a essa definição estão mais bem explicitados no código geral da Wada.

Como qualquer droga, inclusive as lícitas, a cannabis representa sim um risco à saúde de seu consumidor. Os mais óbvios são para o sistema respiratório. Mas há também as potenciais consequências neurológicas e até psíquicas, que ainda não são claras.

Clayton Dornellas é professor na Unifesp e presidente da Comissão Temporária para o Estudo da Endocrinologia, Exercício e Esporte da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). O médico ressalta os potenciais riscos do consumo da maconha, em especial para jovens:

“A alta prevalência de adolescentes consumindo cannabis gera um grande número de adultos jovens que podem desenvolver depressão e comportamento suicida atribuíveis à cannabis. Este é um importante problema de saúde pública”, explica Clayton. “Apenas por esse viés, já é seguro imaginar que a Wada não deve revisar a presença da Cannabis na lista por um bom tempo”, acredita.

Outro ponto que tanto Sampaio quanto Dornellas destacam é em relação a dois pontos ainda pouco claros quanto possíveis vantagens esportivas da maconha, como desinibição e leve broncodilatação, que aumentaria o fluxo de oxigênio para os pulmões.

“Mas, se inalada, a cannabis pode causar irritação, o que geraria uma desvantagem”, pondera Sampaio.

Aqui, também, há com a cannabis um tratamento diferenciado.

O álcool, por exemplo, com todo seu potencial lesivo em diferentes frentes, bem como o fator desinibidor, foi excluído no ano passado da lista de itens proibidos da entidade. E analgésicos à base de ópio, como ressaltado anteriormente, podem ser altamente viciantes, embora sejam largamente prescritos para atletas e liberados pela Wada.

TEMPO

Se a cannabis vai um dia deixar a lista de substâncias proibidas da Wada, é difícil saber.

Com diversos indícios de problemas médicos que podem surgir ou se agravar a partir do seu consumo, é de se imaginar que o processo não passe de uma utopia.

Contudo, com a recente liberação do consumo social no Canadá e em diversos estados norte-americanos, a possibilidade do véu de conservadorismo da entidade perder força é palpável.

Nesse sentido, a revelação de consumo por parte de personalidades renomadas do esporte, como Bob Burnquist, e lutadores de MMA como Nate e Nick Diaz, pode ajudar.

Nos EUA, onde diversos estados já permitem o consumo livre da cannabis, é comum grandes nomes do esporte se manifestarem sobre o assunto, fazendo defesa aberta do uso, sem meias palavras.

Kenyon Martin, escolha número 1 do draft da NBA em 2000 e ex-jogador do New York Knicks, e Martellus Bennett, vencedor do Super Bowl LI com o New England Patriots, além de declararem usuários, dizem que muita gente nas ligas profissionais em que atuaram usam a droga.

“Inclusive dirigentes”, diz Bennett.

De qualquer forma, ainda que a liberação venha a acontecer, não há impressão de que isso virá num curto prazo.

“Cada um tem o seu livre arbítrio. Quer fumar maconha, fuma, mas se usar e for testado, vai ser suspenso e não há nada que possamos fazer. A realidade é essa”, diz Burnquist, resumindo com clareza em que pé está a questão.

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#PraCegoVer: fotografia (de capa) em primeiro plano de Bob Burnquist vestindo camiseta em tons de azul e equipamentos de segurança, como um capacete branco, e segurando o skate e uma garrafa de água em uma mão, enquanto levanta a outra e faz sinal de positivo; e um fundo desfocado, onde pode-se ver parte do logo da Red Bull. Créditos da foto: Leo Lemos – Veja.

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