Audiências de custódia mantêm 99% dos réus sob prisão preventiva ou medida cautelar

Fotografia em plano fechado que mostra três molhos de algemas presos a grades, das quais uma tem uma parte removida, por entre as quais pode-se ver, ao fundo desfocado, presos vestidos com uniformes de cor laranja. Custódia.

Mesmo com a regulação das audiências de custódia pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2015, ordenando que o encontro entre réu e juiz ocorra em até 24 horas após comunicação da prisão, hoje, 57% das audiências no país ainda resultam em prisão preventiva. Índice chega a 67% nos casos em que o único crime é o tráfico de drogas. Relatório mostra ainda que a palavra do policial que efetuou a prisão é a única prova em 90% nos casos de tráfico. Com informações da Folha

Quatro anos após as audiências de custódia saírem do papel, a maioria das pessoas ainda é enviada pela Justiça para o cárcere em prisão preventiva. Menos de 1% tem autorização para responder ao processo sem cumprir medidas cautelares.

Em 56% dos casos, a palavra do policial é a única prova de acusação —e há queixas de que relatos de tortura estão sendo negligenciados.

O caso de São Paulo chama a atenção. Em 2017, as prisões preventivas representavam 50% das decisões. Agora, somam 65%. Nenhuma consegue liberdade irrestrita.

Os dados estão no relatório “O fim da liberdade”, elaborado pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) em parceria com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e antecipado pela Folha. O material foi apresentado no último dia 29 de agosto.

Trata-se do maior levantamento já feito sobre as audiências de custódia no Brasil. Foram acompanhados 2.774 casos de abril a dezembro de 2018, em 13 cidades de nove estados —São Paulo, Alagoas, Bahia, Distrito Federal, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

As audiências de custódia foram regulamentas pelo CNJ em 2015, em cumprimento ao compromisso assumido pelo país na ratificação do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Desde então, o encontro entre a pessoa presa e o juiz deve ocorrer em até 24 horas após a comunicação da prisão. É o momento em que o magistrado avalia se a detenção atendeu aos requisitos legais, se a pessoa presa foi vítima de maus-tratos ou tortura e, ainda, se precisa responder ao processo em prisão preventiva —que deve ser a exceção, não a regra.

Antes, a avaliação do juízo era feita só na audiência de instrução, meses depois da prisão.

Na prática, no entanto, 57% das audiências no país ainda resultam em prisão preventiva. O índice chega a 67% nos casos em que o único crime é o tráfico de drogas. Isso acontece mesmo que o tráfico seja um crime sem violência, grave ameaça nem vítimas —fundamentos previstos no Código de Processo Penal para que decisão do tipo seja decretada. Outros critérios são quando há risco de o acusado fugir, cometer novos crimes ou atrapalhar a instrução probatória.

Hoje, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, com 812 mil detentos, número que cresce 8% ao ano. Cerca de 42% não têm condenação. De forma geral, o sistema é superlotado e dominado por facções criminosas. No fim de julho, a maior rebelião do ano deixou 62 mortos —sendo 16 decapitados— numa unidade prisional em Altamira, no Pará.

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​Para quem não vai responder ao processo atrás das grades, a imposição de medidas cautelares, como comparecimento em juízo, proibição de ausentar-se da comarca e recolhimento domiciliar noturno, é a regra. Em geral, mais de duas medidas são aplicadas. Só 0,89% consegue liberdade irrestrita.

O relatório considera tal dado alarmante. “O uso recorrente de medidas cautelares, embora seja uma alternativa à prisão e implique menor interferência do Estado na vida do cidadão, passa a ser uma muleta utilizada pelos magistrados”, afirma.

O comparecimento periódico em juízo, por exemplo, “desconsidera as dificuldades que pode representar a quem não tem renda fixa e precisa arcar com o ônus do deslocamento até o fórum e com as faltas no trabalho”, continua o texto.

O vice-presidente do IDDD, Hugo Leonardo, afirma que as audiências não estão privilegiando o princípio de não culpabilidade. “É parte de uma cultura punitivista, que faz com que juízes achem razoável a punição cautelar, descumprindo a Constituição”, diz.

Para ele, ao invés de atacar as causas de criminalidade, a Justiça “aumenta o caos nas penitenciárias e as fileiras das facções. É a criminalização da pobreza, que acirra a desigualdade social”.

Segundo o presidente da seção do Rio da OAB (Ordem dos Advogado do Brasil), Luciano Bandeira, a audiência “não pode ser uma formalidade cumprida de forma burocrática”, afirma. “Todos precisam estar envolvidos no espírito da sua finalidade que é a de manter na prisão apenas aqueles que podem produzir dano efetivo”.

Patrícia Alvares Cruz, corregedora do Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais), que coordena as audiências de custódia na capital paulista, refuta o argumento. Segundo ela, os magistrados têm respeitado os direitos fundamentais dos réus, como o de se manter em silêncio e o de ampla defesa.

Mas, desde que assumiu e trocou a equipe de 12 juízes, em janeiro de 2018, a prioridade do órgão mudou. “O que existe de diferente é a preocupação com outro direito constitucional e fundamental: o da sociedade de ter garantida a segurança pública. A gente tem que contrabalançar e em cada caso decidir qual direito deve prevalecer”, afirma.

Cruz também aponta uma dissonância na compreensão da lei. “O que existe hoje é uma cultura de que o tráfico de drogas é um crime banal. Não é. A lei equipara o tráfico ao crime hediondo. Sem a punição dos traficantes, nunca vamos combater as organizações criminosas”, afirma a juíza.

Ela ressalta que neste ano os principais indicadores criminais tiveram queda em São Paulo, como homicídio, latrocínio, roubo e furto de veículos. Segundo a magistrada, o resultado é diretamente ligado ao número de pessoas presas e apreendidas, que cresceu 6% de janeiro a julho, de 98 mil para 103 mil.

Além disso, cabe ao Executivo, e não ao Judiciário, atentar à superlotação no sistema penitenciário, diz.

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TORTURA E ALGEMA

Segundo o relatório do IDDD, o ambiente das audiências de custódia não favorece denúncias de violência ocorridas durante a prisão.

Isso porque 83% das pessoas estavam algemadas durante o cara a cara com o juiz no período analisado. No Sudeste e Centro-Oeste, o uso é um padrão. Além disso, na quase totalidade (96%) dos casos havia agentes de segurança na sala —em algumas cidades, a presença chegava a quatro policiais.

De acordo com a Súmula Vinculante 11 do STF (Supremo Tribunal Federal), o uso de algemas é excepcional e lícito só em casos “de resistência e fundado receio de fuga ou perigo à integridade física própria ou alheia”.

O número de agentes e o porte explícito de armamentos, diz o texto, “têm o efeito óbvio de intimidar eventuais vítimas”.

A corregedora do Dipo afirma que, na prática, o aparato de segurança existe porque é difícil analisar um risco de fuga. “O juiz anuncia se vão ficar presos ou soltos e muitas vezes os autuados ficam revoltados, xingam. Se a gente não tiver ele algemado e escoltado por um policial, ele vai sair pela porta e vai embora”.

Ela contabiliza de 100 a 150 réus ouvidos por dia no Fórum Criminal da Barra Funda, na região central da capital paulista, e 19 PMs destacados para acompanhá-los.

Fotografia em primeiro plano de várias pessoas, em perfil e de costas, que circulam em frente à entrada (fachada de vidro) do "Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães", do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

#PraCegoVer: fotografia em primeiro plano de várias pessoas, em perfil e de costas, que circulam em frente à entrada (fachada de vidro) do “Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães”, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Foto: Zanone Fraissat | Folhapress.

Os números do relatório expõem ainda pouco interesse em saber de ocorrência de tortura no momento da prisão e de dar encaminhamento aos relatos. Os pesquisadores anotaram que 13% das pessoas não foram indagadas sobre violência policial. Entre os que foram, 26% responderam que sim, haviam sofrido agressões, sendo a Polícia Militar apontada como agressora em 76% dos casos.

A ocorrência de violência que caracterize tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes torna o flagrante ilegal. Ainda assim, o juiz só relaxou o flagrante em 2% das audiências, ou 56 em números brutos. Entre os quase 3.000 casos analisados, em apenas cinco o relato de violência da pessoa custodiada embasou o relaxamento.

Mesmo com o relato, o Ministério Público não pediu encaminhamento da denúncia em 74% dos casos. Em menos de 1% houve determinação de instaurar um inquérito policial.

O relatório mostra ainda que o testemunho do policial que efetuou a prisão é a única prova de acusação em 56% dos casos. Esse índice sobe para 90% nos casos de tráfico de drogas.

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Nem todos os estados seguem à risca a resolução do CNJ.

Em cidades como Rio e Porto Alegre, o encontro da pessoa presa com a autoridade judicial acontece no presídio, e não no fórum. Na capital do RS a primeira análise acontece com base em documentos (autos de prisão em flagrante e boletins de ocorrência) e só se encontra com o juiz quem já teve a prisão preventiva decretada.

Em Brasília, Belo Horizonte, Rio, Recife, Olinda e São Paulo há espaço reservado para a conversa entre presos e defensores —nos demais locais pesquisados, não.

O documento afirma que quase 70% dos casos envolvem crimes não violentos e mostra o perfil predominante entre os custodiados, que espelha o retrato da população prisional brasileira. Homens são 91%, e dois em cada três deles têm até 29 anos. Os negros também são a maior parte (64%). Não cumpriram o ensino fundamental 35%, e não têm renda fixa 38%.

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#PraCegoVer: fotografia (de capa) em plano fechado que mostra três molhos de algemas presos a grades, das quais uma tem uma parte removida, por entre as quais pode-se ver, ao fundo desfocado, presos vestidos com uniformes de cor laranja. Foto: Zanone Fraissat | Folhapress.

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