Ao apoiar guerra às drogas, sociedade está com dedo no gatilho, afirma socióloga

Fotografia, em primeiro plano, de Nathália Oliveira usando uma pashmina de cor creme e olhando serena para a câmera, à frente de um muro de superfície irregular verde que aparece à direita. Foto: Karime Xavier / Folhapress.

Proibicionismo fomenta corrupção e preconceito, diz Nathália Oliveira, da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas. As informações são da Folha de S.Paulo

“A gente está segurando armas na nossa própria cabeça, não só na dos bandidos.”

morte de 28 pessoas em uma operação policial na favela do Jacarezinho, a mais letal da história do Rio de Janeiro, mostrou que o tráfico e a guerra do Estado às drogas seguem seu curso no Brasil, com ou sem pandemia.

Se a morte de George Floyd pelas mãos de um policial nos Estados Unidos, há um ano, trouxe o debate sobre violência policial e racismo à ribalta, ainda se discute pouco no Brasil como esses temas estão inexoravelmente ligados à política de drogas.

Debates sobre as drogas encontram pouca receptividade no governo de Jair Bolsonaro, que exaltou a operação no Rio e cujos ministros negam até mesmo a existência da maconha medicinal, apesar de evidências científicas.

A discussão do projeto de lei 399, que permitiria o cultivo de cânabis por empresas para fabricação de medicamentos, vem sendo tumultuada por deputados governistas em comissão na Câmara; Bolsonaro já disse que vai vetar o texto caso seja aprovado.

Já o exame pelo Supremo Tribunal Federal de ação que pode descriminalizar o porte de drogas para uso pessoal está parado há seis anos sem avanços.

“Não existe um caminho dentro do proibicionismo para que a gente acabe com essa guerra às drogas”, diz a socióloga Nathália Oliveira, 33, uma das fundadoras da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, à Folha. “Quem não se beneficia da proibição [às drogas] é a sociedade, que acha que está segura mas está com o dedo indiretamente no gatilho. O tanto de gente que morre nessas operações totalmente arbitrárias, para não dizer criminosas, é vítima dessa arma também.”

A Sra. acha que, no último ano, após a morte de George Floyd e os protestos contra violência policial nos EUA e no Brasil, aumentou a percepção sobre a relação entre racismo e guerra às drogas?

A percepção sobre segurança pública e racismo aumentou; mas a percepção que faz a intersecção entre segurança pública, racismo e política de drogas ainda não é automática.

Há muitos anos, muito antes da política de drogas atual, a polícia tem a função de ser um braço do Estado que silencia as classes mais populares, que pega mais pesado nos bairros periféricos. A política de drogas funciona como uma excelente justificativa política para a continuidade dessas práticas. A maneira como a gente concentrou investimentos no sistema de segurança pública e de Justiça faz com que a polícia gaste muito de seus esforços nesse dia a dia tentando combater o varejo das drogas.

É possível mudar essa situação, sabendo que há um ganho eleitoral para políticos que dizem que combatem as drogas e facções e até mesmo defendem matar supostos bandidos?

Eu não vejo melhor antídoto para a ignorância ou desconhecimento que não seja a informação. A gente precisa demonstrar para a população quanto custa essa guerra e o quanto nós, cidadãos, ao permitir que nossos impostos sejam investidos dessa maneira no sistema de segurança pública e no sistema de Justiça, estamos de maneira indireta apertando esse gatilho. Se a gente está apertando esse gatilho, a gente tem uma dívida. Como sociedade, precisamos o quanto antes ser bombardeados de informações para que a gente faça melhores escolhas e cobre, inclusive dos nossos candidatos, esse tipo de postura.

Não existe um caminho dentro do proibicionismo para que a gente acabe com essa guerra às drogas. Não existe um caminho que não seja pensar uma regulamentação de todas as drogas hoje existentes, inclusive o álcool, os medicamentos, acompanhado da discussão de um novo modelo de segurança pública e de Justiça junto de um modelo de cuidado, prevenção e atenção.

Temos, como sociedade, de fazer um pacto de uma circulação pacífica dessas substâncias. É por isso que eu cobro meus governantes, é por isso que eu faço “advocacy” para essa pauta, para que mais pessoas se sensibilizem e não queiram mais ser o dedo indireto nesse gatilho.

A sra. acha que no Brasil vem avançando o entendimento da adição como um problema de saúde?

Na medida em que é uma questão de saúde pública, o sujeito precisa ser cuidado, e não criminalizado. Bastante influenciada por essa visão, a gente fez uma mudança na nossa legislação de drogas em 2006, que faz com que o uso de drogas não seja mais uma contravenção passível de pena de prisão, de regime fechado.

Ainda assim, a ideia de que dependência química ou o uso de drogas é algo que tira toda a capacidade do sujeito de autorregulação, gestão da sua própria vida e gestão das relações sociais, produz um estigma sobre qualquer usuário de substâncias psicoativas, independentemente de esse usuário desenvolver problemas crônicos ou não com o uso.

Isso gera um problema, que é que os usuários só procuram os serviços para se cuidar quando já estão em um estágio muito prejudicial de uso. Ao mesmo tempo, os profissionais de saúde, exceto alguns da saúde mental que focam mais no uso de drogas, não percebem isso no atendimento de seus pacientes, no dia a dia da UBS, do posto de saúde. Quando isso aparece, imediatamente pega-se esse cidadão e se encaminha para o Caps [Centro de Atenção Psicossocial]. E a verdade é que muitas vezes ele não vai procurar esse cuidado no Caps, e o posto de saúde se retira do cuidado desse sujeito.

Por fim, o sujeito que desenvolve um problema crônico e aparece nas políticas públicas acaba sendo olhado só a partir do uso de drogas, e as outras vulnerabilidades sociais não são encaradas.

Para a polícia, na periferia o cara que é pego [com drogas] é traficante, ele não é usuário, e o cara que é pego em regiões mais ricas da cidade dificilmente é traficante. A pessoa que tem mais poder aquisitivo se dá bem nesse mercado, porque ela pode comprar pelo delivery, totalmente segura, na casa dela, e dentro dessas quatro paredes é como se não existisse o tráfico de drogas nem o consumo de drogas. Ocorre mais uma vez essa estigmatização dos territórios pobres, porque é neles que acontece um varejo de drogas mais barato e não dá para fazer um varejo de drogas que não seja na rua.

Diante da dificuldade de aprovar em comissão da Câmara um projeto bastante restrito sobre maconha medicinal, a sra. acha que o Brasil está ficando ou já ficou para trás nesse setor?

O Brasil poderia ser um produtor e exportador de cânabis gigante. O país fica para trás nessa perspectiva e também na própria modernização da legislação, porque o projeto 399 está falando sobre cannabis medicinal e o plantio e a possibilidade de cultivo sob prescrição médica, com regras, inclusive bastante rígidas. Não é aquilo que as pessoas pensam, vou poder plantar na minha varandinha.

O projeto está tramitando na Câmara, só que esses setores rapidamente mobilizaram a base conservadora e fundamentalista, pressionando os deputados, e o projeto se tornou superpolêmico.

Flexibilizar a questão da cânabis é, no espectro político mais amplo, retirar a possibilidade de estigmatização e criminalização de um campo grande de pessoas que essa moral conservadora tenta criminalizar. Qualquer atitude do espectro ideológico que tente modificar o que está posto é altamente criticada. Os “drogados” não estão nessa só pelo uso de substâncias. A gente está falando do antiproibicionismo, é uma visão de mundo. A gente é contra a proibição da circulação de determinadas mercadorias por que isso enfraquece a democracia, cria um sistema de corrupção transnacional que indiretamente enfraquece todas as instituições.

Como a gente conseguiu controlar drogas tão populares quanto o cigarro e os remédios e vamos dizer que a gente não pode controlar outras substâncias? A venda de álcool é completamente descontrolada e incentivada, assim como essas substâncias proibidas não têm controle nenhum, nem na qualidade, não existe controle de como se vende, para quem se vende, quem trabalha no setor.

Para mim, menor de idade trabalhando no tráfico é trabalho escravo, não é bandido. A Organização Internacional do Trabalho classifica crianças e adolescentes sendo explorados no tráfico de drogas como trabalho escravo, trabalho infantil. Ao proibir, você tem um mercado que explora crianças para venda e para uso, não tem qualidade da mercadoria sendo consumida, e a proibição não faz com que deixe de movimentar toda essa grana. Quem não se beneficia da proibição é a sociedade, que acha que está segura, mas está com o dedo indiretamente no gatilho. E é um gatilho que pode a qualquer momento ser apontado para ela mesma.

O tanto de gente que morre nessas operações totalmente arbitrárias, para não dizer criminosas, é vítima dessa arma também. Assim como o sujeito que está andando na rua pode ser um cidadão de bem, não ser usuário de drogas, não estar envolvido com o crime, dependendo de onde ele estiver, que moto que ele tiver, ele vai ser enquadrado do mesmo jeito, com a mesma violência e truculência. A gente está segurando armas na nossa própria cabeça, não só na dos bandidos.

Nathália Oliveira é socióloga, foi redutora de danos e educadora no Centro de Convivência É de Lei, articuladora da Rede da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e presidente do Conselho Municipal de Políticas Sobre Drogas e Álcool de São Paulo. Fundou com o historiador Dudu Ribeiro a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, em 2016.

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#PraCegoVer: fotografia, em primeiro plano, de Nathália Oliveira usando uma pashmina de cor creme e olhando serena para a câmera, à frente de um muro de superfície irregular verde que aparece à direita. Foto: Karime Xavier / Folhapress.

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