A vanguarda brasileira: colocar o paciente no centro
“Quem propõe algo para mudar uma realidade fica exposto às críticas e aqueles que não fazem nada, nunca se equivocam. Agora, o Brasil tem a chance de avançar e qualquer movimento contra o projeto pode representar uma abertura ao retrocesso” — Marco Algorta*, sobre o PL que regula o uso medicinal da cannabis, ao Estadão
O Uruguai foi o primeiro país do mundo a regulamentar o uso da cannabis, em 2013. Ao longo desses sete anos, acompanhei de perto desde o desenho dos primeiros projetos regulatórios, que mais tarde se transformariam em leis, até as articulações políticas e sociais necessárias para que a votação de algo tão vanguardista pudesse se tornar realidade. Vi de perto, ao longo desse período, os avanços da ciência e da pesquisa, bem como a evolução da cadeia produtiva e a resultante geração de emprego e renda no setor. Mais do que isso, com o passar dos anos, a população uruguaia testemunhou a melhora da qualidade de vida daqueles que passaram a ter acesso a medicamentos à base de cannabis para alcançar maior grau de eficácia nos seus tratamentos.
A nossa legislação não nasceu perfeita. A regulação que prevê o cultivo específico para associações no Uruguai foi promulgada somente no ano passado. Da mesma forma, os decretos para liberar exportações paralisadas acabaram de ser assinados e ainda temos muito o que avançar. As leis são forjadas dentro dos cenários políticos possíveis para que as aprovações se tornem realidade. No Brasil, isso não é diferente.
Posso dizer, com essa experiência adquirida, que o Projeto de Lei apresentado no Brasil é realista e democrático. Representa um inegável avanço da regulação para o uso medicinal da planta de cannabis. Todos os demais países que trilharam o mesmo caminho avançaram passo a passo. Não podemos subir uma escada de uma vez só, sem prestar atenção a cada um dos degraus. Isso nos deixaria em risco de uma queda brusca. São muitos os pacientes cansados das quedas e das tentativas.
Em primeiro lugar, o projeto brasileiro, visto desde um contexto internacional, se coloca em uma posição de vanguarda ao garantir a acessibilidade dos pacientes aos produtos derivados da cannabis com fins medicinais — desde que haja a supervisão de um profissional especializado. Nenhuma outra legislação do mundo relacionada ao tema colocou o paciente no centro das discussões.
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A proposta estabelece um ambiente amplo e democrático para legitimar as atividades das associações de pacientes. Sem regras extravagantes, o PL permite aos produtores a incorporação aos mecanismos legais de produção e acessibilidade. Também dedica um capítulo inteiro para pesquisas científicas, como ocorre em países como Canadá, Israel, Uruguai, dentre outros. Sem essa ferramenta legal, o desenvolvimento econômico gerado pelos avanços científicos poderia ser facilmente absorvido por atores cujo foco não está na acessibilidade dos medicamentos. Sem ciência, a regulação representaria a abertura de um mercado e nada mais.
O projeto contempla as categorias para os derivados da cannabis como os produtos à base de fórmulas magistrais fitoterápicas e os próprios fitoterápicos, o que garantirá à população brasileira insumos com monitoramento científico e preços acessíveis. Soma-se a isso, a previsão de que as farmácias possam ter a sua produção disponível pelo Sistema Único de Saúde.
Do ponto de vista empresarial e de oportunidades econômicas, poderíamos destacar dois itens fundamentais: o primeiro é a ênfase nos usos veterinários que o texto do PL apresenta. Esse é um mercado em que o Brasil terá vantagens competitivas como nenhum outro país e as regras estão claras no corpo da proposta. O segundo ponto de destaque é a autorização expressa para a produção e comercialização de alimentos e suplementos alimentares, desde que suas formulações sejam totalmente isentas de Δ9-THC. Em nível nacional, nenhum país do mundo foi capaz de implementar totalmente esta regra.
Um ponto que poderá trazer dificuldades para a implementação da legislação no Brasil trata sobre a importação de sementes e de clones para iniciar os cultivos. No caso do Uruguai, por exemplo, foi necessária muita criatividade para contornar a lacuna legal sobre as importações desses componentes. No caso da Colômbia, muito tempo e recursos financeiros em pesquisa foram investidos para resolver a mesma questão.
Os parlamentares que lideraram a formulação do substitutivo da Lei 399/2015 foram muito cuidadosos ao entender o momento político do Brasil, a realidade dos pacientes e as oportunidades econômicas que o projeto representa em tempos de crise. Quem propõe algo para mudar uma realidade fica exposto às críticas e aqueles que não fazem nada, nunca se equivocam. Agora, o Brasil tem a chance de avançar e qualquer movimento contra o projeto pode representar uma abertura ao retrocesso.
*Marco Algorta é presidente da Câmara de Empresas de Cannabis Medicinal do Uruguai.
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#PraCegoVer: em destaque, fotografia de Marco Algorta, dos ombros para cima, com a barba comprida, e um cultivo de maconha ao fundo, na parte esquerda do quadro. Imagem: Jornal Correio.
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