A saga da família que foi pioneira no tratamento com extrato da maconha

Fotografia em família de Norberto, Júlia, Katiele e Anny, sentada no colo de sua mãe, todos sorridentes, sentados em um sofá, com uma vegetação logo atrás e, ao fundo, a área externa da casa.

A família de Katiele e Norberto Fischer, pioneira no tratamento à base de canabidiol (CBD) no Brasil, comemora a decisão da Anvisa que libera a venda de produtos à base cannabis e continua na luta pela regulação do cultivo da planta. As informação são da Ecoa/UOL

Katiele de Bortoli Fischer, de 38 anos, viu a vida mudar em 2012, quando a filha caçula, Anny, recebeu o diagnóstico da síndrome CDKL5, um distúrbio neurológico raro que chegou a causar até 80 convulsões por semana na menina. As crises, que duravam até dez minutos, fizeram a criança parar de andar e não conseguir mais se alimentar.

Na época, nenhum medicamento conseguiu minimizar as consequências. Foi então que a paisagista, juntamente com o marido, decidiu importar ilegalmente uma substância derivada da maconha, o canabidiol (CBD).

Com o resultado promissor no tratamento da filha, que apresentou melhora desde o primeiro uso do medicamento, a família passou a lutar na Justiça para trazer a substância legalmente para o país, até que, em 2014, conseguiu a autorização pioneira, uma decisão que abriu caminho para a permissão do uso medicinal da maconha no Brasil.

Agora, a família comemora a determinação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) divulgada na último dia 3, que aprovou a liberação da venda em farmácias de produtos à base de cannabis para uso medicinal no país. A medida entra em vigor 90 dias depois de publicada no Diário Oficial da União e pode ser revisada em até três anos, mas trouxe alívio a quem depende desse tipo de tratamento.

“Essa novidade é positiva. Vai facilitar bastante a vida, não terá mais a demora em conseguir o Ofício da Anvisa, a importação e o desembaraço aduaneiro. Existe ainda um caminho bem longo a se percorrido. Porém a notícia me motivou a continuar acreditando”, diz Katiele.

Na decisão dos diretores da Anvisa, foram autorizados o registro e a fabricação de remédios à base da erva no Brasil e sua venda em farmácias, desde que não sejam de manipulação. O plantio, porém, está vetado, fazendo com que a matéria-prima continue a ser importada. Ela deverá vir ao país semielaborada, ou seja, não é permitido importar a planta ou parte dela, mas somente o substrato da cannabis.

Entre o drama e a luta

Nascida em Barra do Garças (MT), Katiele atualmente mora na região do Lago Norte, a 12 km do centro de Brasília, com o marido, Norberto Fischer, e as filhas, Júlia, de 13 anos, e Anny, de 11.

As duas gestações da paisagista foram consideradas normais pelos médicos. Mas, com Anny, os primeiros sintomas vieram aos 45 dias de vida. Segundo a mãe, ela deu uma tremidinha e revirou o olhinho: “Parecia uma convulsão”. O diagnóstico da síndrome de Rett CDKL5, porém, só chegou quatro anos depois. “É uma síndrome muito rara. Só conseguimos encontrar 30 casos em todo o país.”

A mãe conta que, nos primeiros anos de vida, mesmo com as crises convulsivas, Anny foi se desenvolvendo: “Ela conseguiu andar com três anos, falava ‘mamã’, ‘papá’. Ela tinha um desenvolvimento. Devagar, mas tinha”.

Com quatro anos, no entanto, a menina começou a ter crises mais fortes: “Por conta disso, ela foi perdendo tudo o que tinha conquistado. Numa semana, ela não conseguia mais andar direito; algumas semanas depois, ela já estava andando de joelhos; passado mais um mês, ela já não sentava; e, no final desses quatro meses de regressão, ela perdeu tudo, tudo”. Katiele explica que eram tantas convulsões, e tão frequentes, que a filha regrediu completamente. “Ao final desse período, ela não se mexia mais, não sorria, não chorava, ficou bem comprometida mesmo.”

Como nenhum medicamento fazia efeito em Anny, Katiele começou a buscar tratamentos alternativos na internet. Foi em um grupo de Facebook que ela encontrou no canabidiol um possível “milagre”. Até então, a paisagista não havia tido nenhum contato com a maconha. Apenas pensava o que lhe era dito desde criança: que não era uma coisa boa e que ela não deveria chegar perto.

Leia: Importação direta do canabidiol é vitória para pacientes com epilepsia intratável

“Quando vi que poderia ser usado no tratamento, achei graça a princípio, por ser da Cannabis. Porém logo vi que era sério e poderia ser uma opção para Anny. Todo processo que envolve mudança de cultura é demorado e difícil, nós sabíamos que não seria fácil, mas cada vitória conquistada é importante e faz a diferença na vida das pessoas”, destaca.

Mesmo sabendo que o uso do canabidiol no país era ilegal, a família trouxe a substância para o Brasil por meio de um contato nos EUA que a escondia em produtos e enviava pelos Correios. O primeiro uso de Anny foi em novembro de 2013. A melhora foi percebida quase que de imediato. As dores diminuíram e as convulsões pararam. Um alívio para toda a família.

“Ficamos chocados com tamanha eficiência. Quanto à melhora, não foi só dela mas também da família inteira. A redução nas crises trouxe qualidade de vida. Hoje ela dorme a noite toda, e nós também”. Katiele conta ainda que, embora a menina dependa de cadeira de rodas para se locomover, ela se movimenta e demonstra o que sente: “Rola no chão, faz birra e cara feia, deixa claro que não gosta de fisioterapia e não colabora, ao acordar faz barulho para chamar atenção. São pequenas mudanças, mas que, para nós, têm um grande valor”, comemora.

Na época dos primeiros resultados, a felicidade da família durou pouco. O canabidiol, vendido como pasta, era enviado dos EUA dentro de uma seringa, camuflado em produtos como brinquedos. Na segunda tentativa, foi barrado pela Anvisa assim que chegou ao Brasil.

A criança ficou quase uma semana sem o medicamento, que utiliza duas vezes por dia, e as crises voltaram. Só em 2014 e depois de muita luta, a família conseguiu na Justiça o direito de importar o canabidiol de forma legal. O advogado da família apresentou planilhas mostrando a redução das convulsões na menina.

Em janeiro de 2015, a Anvisa decidiu pela retirada do canabidiol (CBD) da lista de substâncias proibidas no Brasil. Com isso, o produto passou para a categoria das controladas. Meses depois, a Receita Federal simplificou o processo de importação. Uma vitória para todas as famílias que fazem uso do medicamento.

A partir de 2020, a compra poderá ser feita em farmácias mediante prescrição médica. A expectativa é que o custo baixe com a venda no Brasil, embora o valor deva continuar alto, já que a matéria-prima é importada — uma seringa de pasta de canabidiol como a usada por Anny atualmente custa cerca de 199 dólares, o equivalente a R$ 832, e dura em torno de um mês e meio, mas depende do tratamento. “Se a gente um dia puder plantar no Brasil, eu tenho certeza de que os preços vão baixar ainda mais”, diz Norberto Fischer, pai de Anny. “Por isso que uma das nossas lutas é poder plantar no Brasil, o que deve facilitar inclusive as pesquisas”.

Luta retratada em documentário

Em 2016, a família foi parar nas telonas com o longa-metragem “Ilegal”. O filme acendeu a discussão em torno do uso medicinal da maconha e abordou as dificuldades burocráticas e jurídicas pelas quais famílias de pacientes passam.

Em um trecho do filme, a mãe de Anny tenta falar com a Anvisa, para saber onde se encontra o canabidiol importado por ela dos EUA. Quando descobre que o medicamento foi barrado, a filha começa a convulsionar.

“Foi uma grande oportunidade que o Tarso, diretor do Ilegal, nos deu de divulgar o assunto cannabis e dizer para as pessoas que existia outra opção de tratamento para epilepsia e outras condições. Na verdade, depois do filme, nossas vidas viraram de ponta-cabeça porque, na época, não havia muitas informações sobre o assunto. Então, as pessoas nos procuravam para saber como funcionava, sobre a importação, legislação e tudo mais que envolvia o assunto”, conta Katiele.

Inspiração para outras famílias

Katiele relatou a Ecoa que recebe ligações frequentes de pessoas de países como Chile, Síria e Uruguai pedindo ajuda e informações. São vários os relatos de agradecimento para a família precursora no assunto.

A mãe de Anny já ouviu outra mãe contar que a filha, aos 38 anos, conseguiu ficar sem fazer xixi na cama por uma semana. Já outra confessou que, pela primeira vez, tinha ido ao shopping e ao parque passear sem ter que levar o tubo de oxigênio.

“Faria tudo de novo. O sentimento de saber que contribuí para a melhora na qualidade de vida de pessoas é muito bom. Toda vez que chega aos meus ouvidos que uma criança conseguiu reduzir ou zerar crises me arrepio inteira. Sei o quanto é difícil, sabe? Quando você tem uma criança especial, acaba vendo o mundo com outros olhos. Muitas vezes, o que te parece importante e urgente na verdade não é. As coisas mais simples como um sorriso ou um barulhinho na cama pela manhã são o que há de mais valioso. Essa foi uma lição que Anny ensinou.”

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#PraCegoVer: fotografia (de capa) de Norberto, Júlia, Katiele e Anny, sentada no colo de sua mãe, todos sorridentes, sentados em um sofá, com uma vegetação logo atrás e, ao fundo, a área externa da casa. Foto: arquivo pessoal.

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