A pesquisa e a legislação sobre a cannabis medicinal na Eslovênia

Fotografia que mostra uma parte do rio Liublianica, na Eslovênia, onde se vê construções antigas na margem esquerda, entre elas a igreja franciscana de fachada rosada, e a ponte tripla logo após um meandro, ao fundo. Foto: Diego Delso | Wikimedia Commons.

A cannabis para fins medicinais foi regulamentada em março de 2017 no país, contudo poucos pacientes eslovenos realmente se beneficiaram com a mudança. Saiba mais sobre o assunto com as informações da MCN / Health Europa

Instituto Internacional de Canabinoides (ICANNA) é uma ONG sem fins lucrativos fundada por parceiros da Áustria, Alemanha e Eslovênia, com o objetivo de impulsionar a pesquisa e promover a educação sobre cannabis.

A MCN conversou com o especialista associado do ICANNA Dušan Nolimal, doutor em medicina e mestre em ciências na área de saúde pública, e a professora assistente Tanja Bagar, PhD, sobre o panorama da cannabis na Eslovênia e a necessidade de novas ações políticas sobre legalização.

Qual é o atual status médico e legal da cannabis na Eslovênia?

Na Eslovênia, a cannabis para fins médicos (incluindo extratos, resina e a planta inteira de cannabis) foi legalizada em março de 2017. Os legisladores removeram a cannabis do Anexo 1 de substâncias controladas — a categoria mais restrita reservada para drogas que não têm ‘uso médico atualmente aceito’ — e a colocou na lista de drogas consideradas de alto potencial de abuso com valor medicinal, Anexo 2.

Embora este tenha sido um passo crucial para melhorar o acesso dos pacientes aos produtos de cannabis, poucos pacientes realmente se beneficiaram com a mudança. O governo e o Ministério da Saúde têm sido constantemente criticados como resultado de estruturas deficientes para o acesso dos pacientes à cannabis. Até agora, nenhuma receita de cannabis medicinal foi emitida e nenhuma farmácia importou cannabis medicinal, tornando-a efetivamente inacessível na Eslovênia. Alguns pacientes se beneficiaram muito com produtos alimentícios contendo CBD — no entanto, com a introdução do regulamento da União Europeia sobre Novos Alimentos em 2019, o CBD vendido como suplemento alimentar se tornou ilegal na Eslovênia.

Existe uma diferença entre medicamentos e preparações de cannabis. A distinção é entre produtos que possuem uma autorização de introdução no mercado para uso médico e aqueles que não têm. Na prática, porém, o termo ‘cannabis medicinal’ refere-se a uma ampla variedade de preparações e produtos que podem conter diferentes ingredientes ativos e usar diferentes métodos de administração. ‘Medicamentos’ referem-se aos produtos derivados de plantas e contendo canabinoides sintéticos, com uma autorização de introdução no mercado em vigor. O termo geral ‘preparações de cannabis’ é usado para se referir a produtos derivados da planta de cannabis que não possuem uma autorização de introdução no mercado para uso médico. As preparações de cannabis podem variar muito em composição, o que significa que podem ser difíceis de serem submetidas a testes quanto à eficácia em ensaios clínicos. Em geral, esse quadro regulamentar é insuficiente e muitas vezes contraditório, com muitas áreas cinzentas e falta de clareza quanto às especificidades das abordagens e como são aplicadas na prática.

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Assim, a Eslovênia agora permite o uso medicinal de cannabis ou canabinoides de alguma forma — no entanto, sua disponibilidade legal é principalmente no papel. Os médicos estão se adaptando lentamente aos novos regulamentos e muitas vezes se sentem desconfortáveis ​​em prescrever medicamentos à base de cannabis devido à controvérsia em torno de seu status médico e legal.

Apesar da legalização da cannabis para fins médicos, os pacientes carentes ainda não têm acesso a este medicamento. Apenas um pequeno número de pacientes com uma gama limitada de doenças recebeu tratamento na forma de produtos ou preparações de cannabis, o que significa que a cannabis medicinal permanece inacessível para a vasta maioria dos pacientes que necessitam do tratamento. Enquanto isso, a flor da planta de cannabis, resina e produtos medicinais como Sativex e Epidyolex não podem ser obtidos em farmácias eslovenas.

O uso pode ainda ser restringido pela falta de cobertura de seguro de saúde, uma vez que o marco regulatório nacional não é claro sobre como a legalização deve funcionar na prática. Há uma clara preferência entre os pacientes pela planta de cannabis e seus derivados, em vez de produtos farmacêuticos: preparações de cannabis derivadas de plantas são frequentemente preferidas por causa do suposto efeito entourage (comitiva), o que significa que a combinação de canabinoides e outras substâncias em produtos obtidos a partir de plantas inteiras tem um maior efeito médico do que os canabinoides isolados.

A cannabis medicinal é usada regular ou ocasionalmente por mais de 30.000 pacientes e usuários em remissão, compreendendo cerca de 1,5% da população eslovena. Os usuários de cannabis e seus defensores dizem que a legalização da cannabis no país foi associada a obstáculos ao acesso, obrigando muitos pacientes a recorrer ao mercado ilegal. É mais difícil para os pacientes ter acesso à cannabis medicinal, o que é legal, do que obter cannabis para uso adulto ilícita. Tudo isso prejudica a capacidade dos pacientes de terem acesso seguro a um produto de qualidade consistente em forma e dosagem, o que lhes permitiria realmente obter os benefícios do uso de cannabis em um contexto médico.

A abordagem regulatória insuficiente destaca a necessidade de esclarecer o quadro regulatório da cannabis e suas aplicações na prática. Há uma necessidade considerável de fornecer educação, treinamento e suporte para médicos e outros profissionais de saúde; também, há uma necessidade de dados de pesquisas primárias para apoiar o uso clínico. Os formuladores de políticas e reguladores precisam abordar as áreas de incerteza e se concentrar em desenvolver ainda mais a ciência, bem como os regulamentos. Os grupos profissionais e de pacientes precisam estar ativamente envolvidos na tomada de decisões e serem levados a sério.

Qual é o papel do ICANNA na indústria canabinoide europeia? Quais são seus principais objetivos como organização?

Houve uma grande necessidade de estabelecer uma organização internacional formal independente, visto que temos um interesse crescente pelo tema em todo o mundo. Embora haja uma quantidade significativa de informações disponíveis sobre os vários usos da cannabis e os efeitos dos canabinoides, também há muita desinformação presente nas esferas civil e do estado. Ao mesmo tempo, estamos testemunhando um aumento intenso de usuários de cannabis medicinal. Esses pacientes são relativamente deixados sozinhos, ou com preparações sintéticas como sua única opção.

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Um grande número de resultados de pesquisas e experiências práticas é conhecido sobre os efeitos dos canabinoides na saúde e no bem-estar em países cientificamente avançados ao redor do mundo e, levando em consideração que o sistema endocanabinoide é uma parte vital de cada ser humano, seria irracional e irresponsável negligenciar este campo. O campo da pesquisa canabinoide é altamente promissor, de vários ângulos, e merece uma discussão multifacetada para o bem-estar dos indivíduos e a prosperidade dos governos.

O objetivo do Instituto é reunir especialistas de diversas áreas, possibilitar uma abordagem integrada nesta área e fornecer um espaço neutro e independente para a discussão aberta sobre os canabinoides. Também é de vital importância fornecer acesso a informações verificadas, justificadas e científicas sobre a planta, seus ingredientes e potenciais.

Que cursos educacionais o ICANNA oferece? Como os médicos, terapeutas e outros profissionais podem se beneficiar de uma educação mais ampla sobre a cannabis medicinal?

A maior parte do trabalho educacional que fazemos é em cooperação com outras organizações, no entanto, também organizamos de forma independente a oferta de educação para equipes médicas e o público em geral. Estamos ativamente envolvidos em cursos educacionais para médicos na Áustria e em muitas outras regiões. Também publicamos um livro intitulado Hanf medizin em alemão, que está sendo traduzido para o esloveno e inglês.

A planta do cânhamo/cannabis há muito faz parte da nossa experiência humana neste planeta. Tem sido usado na medicina há milhares de anos, e por muito tempo os médicos prescreveram e forneceram diversos preparados de cannabis. Hoje a situação não é muito diferente. Pesquisas indicam que mais de 50% dos pacientes com uma condição crônica usam canabinoides; o número sobe para 80% em pacientes oncológicos. A medicina do cânhamo veio para ficar e com razão.

Compreender o que as moléculas canabinoides fazem em nosso corpo e a importância do sistema endocanabinoide para nossa saúde e bem-estar são cruciais para dar ao cânhamo o seu devido lugar na medicina: não como uma panaceia, um remédio vegetal para todas as doenças, mas como um buquê bem estudado de moléculas bioativas com imenso potencial. O cânhamo é uma das plantas mais bem estudadas, com dezenas de milhares de artigos publicados, então o argumento que ouvimos muitas vezes — de que não temos dados de pesquisa suficientes — é implausível para dizer o mínimo. A complexa composição química do cânhamo, e sua interação ainda mais complexa com nosso corpo, naturalmente exige ainda mais pesquisas, mas já sabemos o suficiente para dizer sem dúvida que essas moléculas são seguras — muito mais seguras do que a maioria dos medicamentos descritos nas farmacopeias da União Europeia — e eficaz no tratamento de muitas condições médicas.

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Quais seriam os benefícios para a segurança e o bem-estar dos pacientes de se acabar com a proibição da cannabis na Eslovênia?

Embora a maior parte do uso de cannabis na Eslovênia seja ocasional e poucos problemas significativos estejam associados a ela, é precisamente por causa de seus riscos potenciais que ela precisa ser devidamente regulamentada, para proteger pacientes, menores e outros grupos vulneráveis. É precisamente por que a cannabis não é inofensiva — porque o transtorno por uso de cannabis e o uso por menores e outros grupos vulneráveis ​​são problemas reais — que precisamos acabar com sua proibição: o fim da proibição da cannabis em nosso país também traria a possibilidade de regulamentar a produção e fornecimento de cannabis para uso medicinal. A proibição não teve nenhum impacto sustentado na redução do mercado ilícito de cannabis e outras drogas, ao mesmo tempo que impôs um pesado fardo à sociedade e criou impactos negativos para a saúde pública. Em vez de basear a legislação na ideologia, a nova regulamentação seria baseada em evidências do que funciona, com foco em medidas reais de sucesso, como a redução de danos à saúde e sociais, e não apenas medidas como apreensões e prisões relacionadas a delitos por maconha. Muitos dos danos da proibição desapareceriam e uma gama de novas oportunidades se abriria. Os mercados criminosos de cannabis seriam substituídos por regulamentação estatal.

Primeiro, haveria melhores resultados de saúde para comunidades e pacientes. Profissionais, pacientes e comunidades teriam acesso à educação sobre a maconha baseada em evidências. A potência da cannabis seria regulamentada, com informações sobre a própria potência, benefícios e riscos claramente exibidos na embalagem. Os profissionais de saúde seriam capazes de fornecer aos pacientes o apoio necessário para acessarem e usarem eficazmente sua medicação à base de cannabis, para alcançarem benefícios terapêuticos ideais e terem uma melhor qualidade de vida. Haveria reduções nos potenciais danos à saúde à medida que as pessoas mudassem para produtos e preparações de cannabis controlados e menos nocivos, ou para métodos menos nocivos de consumo, se estes se tornassem acessíveis.

Além disso, haveria menos estigma e discriminação contra os usuários de cannabis em geral, bem como menos abusos de direitos humanos dos pacientes relacionados à aplicação da lei de drogas. Em geral, haveria menos crimes relacionados às drogas com menos pessoas envolvidas e, portanto, menos lucros criminosos disponíveis para alimentar a corrupção. Haveria menos pressão sobre o sistema de justiça criminal e uma população carcerária geralmente reduzida, o que melhoraria a coesão social no nível da comunidade. Isso traria economias financeiras consideráveis, especialmente com a redução dos gastos com justiça criminal e prisões. Os recursos gastos com a proibição da cannabis seriam redirecionados para outras áreas, seja no âmbito da aplicação da lei ou para outros programas de saúde, sociais, educacionais e econômicos. O mercado de cannabis legalmente regulamentado desencadearia e aumentaria as receitas fiscais.

Como a cooperação interdisciplinar pode beneficiar a pesquisa em cannabis e canabinoides?

A cannabis como planta (Cannabis sativa L.) tem tantos usos potenciais que atinge uma ampla gama de campos na ciência e na indústria. A planta em si é interdisciplinar, desde biologia, agronomia, tecnologia, ecologia, saúde e muito mais. Para pesquisar melhor seus benefícios médicos, precisamos de uma abordagem interdisciplinar, pois está claro que a abordagem ‘uma molécula um alvo’ não está funcionando neste caso. Nossos corpos são muito mais do que a soma de suas partes mecânicas, e assim são as partes constituintes do cânhamo.

Tendo em mente que essas moléculas visam evocar ou fortalecer o equilíbrio bioquímico básico em nossas células, tecidos, corpo e vida, é natural que um buquê harmonioso de ingredientes faça um trabalho melhor do que uma única molécula sintética. Isso não quer dizer que ativadores ou bloqueadores de receptores de canabinoides ou enzimas não tenham seu lugar, porque eles têm — mas também vamos dar liberdade à planta, dar às pessoas a liberdade de escolher e liberar o caminho para os canabinoides fazerem o que eles fazem de melhor: apoiar ou criar o equilíbrio.

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia que mostra uma parte do rio Liublianica, onde se vê construções antigas na margem esquerda, entre elas a igreja franciscana de fachada rosada, e a ponte tripla logo após um meandro, ao fundo. Foto: Diego Delso | Wikimedia Commons.

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