A evolução da cannabis na televisão

Fotografia em primeiro plano de Ben Sinclair interpretando o personagem The Guy, um entregador de cannabis, com uma barba cheia e usando óculos tipos natação com lentes que refletem uma imagem calendoscópica e armação com espinhos metálicos; ao fundo, vê-se adornos religiosos diversos e brilhantes. Imagem: High Maintenance | HBO.

A maconha percorreu um longo caminho desde a era do “Reefer Madness”. Saiba mais sobre a evolução da erva na TV no artigo de Jacob Trussell para a coluna Higher Education, no Film School Rejects, com tradução pela Smoke Buddies

Há uma década, escrevi minha tese de faculdade sobre reforma da lei da maconha. Eu pensei que, quando comparada ao álcool e com base nos benefícios medicinais comprovados, a legalização recreativa estaria ao virar da esquina. E de muitas maneiras, eu estava certo. Na última década, nossas atitudes em relação à cannabis mudaram completamente. Enquanto foi descriminalizada ou disponibilizada medicinalmente em mais de quarenta estados, ela agora é totalmente legal para uso recreativo em mais de um quinto do país. Esse é um número alto, especialmente por que uma guerra às drogas que afeta desproporcionalmente as pessoas de cor continua a aumentar.

Mas se você quiser um barômetro preciso para rastrear como a aceitação e a representação da cannabis mudaram no último meio século, não há lugar melhor para procurar do que a televisão. Durante períodos de aceitação mais liberal, vimos representações positivas da planta. No entanto, com as fortes campanhas antidrogas dos anos 1980, a televisão começou a ser usada para distorcer ainda mais a percepção pública da cannabis por meio de episódios hiperbólicos de comédias no estilo DARE.

Mas agora, quando o apoio à legalização federal da cannabis está em seu ponto mais alto, novos programas de televisão estão começando a desfazer grande parte da estigmatização em torno da planta. Para ter uma visão completa de como a televisão surgiu com a maconha, precisamos voltar até os anos 1960.

1960 – 1980: O fim da Reefer Madness

Em 1967, quando o renascimento da Dragnet era popular, a cannabis realmente não estava na televisão, além de uma história inócua no The Andy Griffith Show. A essa altura, os retratos mais conhecidos da maconha ainda eram filmes de exploração (exploitation) dos anos 30, como Reefer Madness e Assassin of Youth, e isso foi refletido no episódio da Dragnet “The Big High”. O detetive Joe Friday (Jack Webb) é chamado para a casa de um jovem casal por suspeita de que eles estão colocando seus filhos em perigo, realizando “festas de maconha”.

O que eu achei mais surpreendente é que, quando Friday interroga o casal, eles rejeitam a afirmação de que a maconha é uma droga de entrada e lembram que não é mais prejudicial que o álcool, argumentos que você ainda ouvirá de boa fé hoje. Sem surpresa, o episódio mostra que os efeitos da maconha são mais parecidos com heroína, transformando o casal em viciados sem esperança, que ficam tão chapados que nem percebem que seu filho está se afogando na banheira. Por ter ficado dois anos aquém do retrato progressivo da maconha que veríamos no filme de enorme sucesso Easy Rider, a opinião de Dragnet sobre a erva é tão antiquada quanto parece.

Menos de uma década depois, a percepção da maconha começaria a mudar na televisão, mesmo com Richard Nixon declarando guerra às drogas em 1972. Sanford and Son, de Norman Lear, e a comédia policial Barney Miller, apresentaram episódios focados na maconha que, no mínimo ajudaram a romper com o estigma de matar bebês que Reefer Madness induziu. Nos respectivos episódios, “Fred’s Treasure Garden” e “Hash”, a cannabis age muito mais como você espera. Os personagens podem se tornar um pouco esquecidos, mas também se tornam um pouco mais gentis, com os dois episódios refletindo a verdade universal da maconha: você terá larica. Você pode correlacionar esses retratos mais doces com a reforma real das políticas de drogas que acontecia na época, como durante os anos 1970, tanto em Los Angeles quanto em Nova York — respectivamente onde esses programas foram definidos — que descriminalizaram a maconha.

1980 – 2000: A era DARE

No início dos anos 80, a cannabis era retratada como inofensiva, principalmente pelo surgimento de arquétipos de ‘stoners’ inocentes, como Cheech e Chong. Mas a próxima década estava pronta para desfazer essa mudança positiva. Sob a administração de Ronald Reagan, o Ato de Controle Abrangente do Crime de 1984 foi aprovado, expandindo a ilegalidade do porte de cannabis e aplicando punições mais severas por condenações. Essa lei, juntamente com o estabelecimento do Escritório de Política Nacional de Controle de Drogas, a campanha “Just Say No” (Apenas Diga Não) de Nancy Reagan e os comerciais hoax de “Este é o seu cérebro sobre o efeito de drogas“, ajudaria a desencadear uma onda de episódios de comédias antidrogas ao longo dos anos 80 e 90.

Esses episódios correspondiam essencialmente a anúncios de meia hora de serviço público, como quando o personagem titular de Punky Brewster recusou baseados no ensino médio apenas dizendo não, ou quando o Saved by the Bell nos ensinou que “não há esperança com drogas”. Home Improvement até nos lembrou que um alcoólatra é obviamente melhor do que um maconheiro e que, se você fuma um baseado, é definitivamente culpa da maconha e não das metanfetaminas.

O que eu acho mais surpreendente nessa era influenciada pelo DARE é como essas mensagens antidrogas foram direcionadas não apenas para adolescentes, mas também para crianças pequenas, como no especial de 1990 Cartoon All-Stars to the Rescue! Com uma introdução do presidente George H. W. Bush e da primeira-dama Barbara Bush, o especial é sobre um jovem atormentado pelo espírito de dependência (dublado por George C. Scott!). O garoto recebe ajuda de uma variedade heterogênea de personagens de desenhos animados populares, incluindo Pernalonga, Ursinho Pooh, Tartarugas Ninja, Garfield, ALF, Slimer de Os Caça-Fantasmas e muitos outros.

Enquanto nunca vemos o garoto fumar os baseados que esconde debaixo da cama, ele consegue roubar o cofrinho da irmã e fica violento quando ela tenta pegar seu esconderijo. Mas tudo fica bem quando eles aprendem — com a ajuda de uma música original dos vencedores do Oscar Alan Menken e Howard Ashman! — todas as maneiras diferentes de dizer não às drogas!

Embora o pânico sobre a maconha tenha sido o mais prevalente nesse período, isso não quer dizer que algumas comédias não adotaram uma abordagem astuta de seus episódios antidrogas. Basta olhar para Roseanne, em que a personagem do título escandaliza David (Johnny Galecki) depois de descobrir um saco de erva em seu quarto. Quando ela diz a seu marido, Dan (John Goodman), ele sorri conscientemente, percebendo que o estoque é na verdade deles de anos antes, quando eles não queriam enfrentar a realidade de envelhecer. Naturalmente, eles procuram recapturar sua juventude e acender um baseado, apenas para perceber que a erva de vinte anos pode causar uma alta menos que estelar.

Até o sitcom de fantoches Família Dinossauros se divertiu ao satirizar a reefer madness com “The New Leaf”. No episódio, o filho Robbie Sinclair (Bobby) descobre uma nova planta que o faz incrivelmente feliz. Naturalmente, ele compartilha com seu pai Earl (Dino) e a irmã Charlene, prendendo-os na folha feliz. Antes que percebam, ficam tão empolgados com a felicidade que se esquivam de toda responsabilidade, ficando cada vez mais dependentes de manter essa alta. Como seu estoque acaba, eles finalmente chegam ao fundo do poço e a mãe Fran pega Baby Sinclair e deixa o resto da família para resolver suas próprias coisas.

Se você acha que é um pouco exagerado, é de propósito. No final do episódio, o elenco de dinossauros quebra a quarta parede e fazem um drops sobre como você deve dizer não às drogas, apenas para que programas de TV como os deles parem de ter que fazer esses episódios antidrogas pesados ​​e enfadonhos. É tão engraçado quanto inesperado e parece ser a maneira do escritor dizer: “Achamos isso ridículo também”.

À medida que a presidência mais jovem e mais moderna de Bill Clinton — que admitiu experimentar (mas não inalar!) maconha — moldou o final dos anos 90, os escritores de televisão começaram a suavizar seus retratos da cannabis, trazendo-a de volta às suas raízes de comédia em That ’70s Show. E, à medida que avançávamos no novo milênio, a televisão começava a corrigir grande parte do estigma que havia colocado sobre cannabis nas duas décadas anteriores.

2000 – 2020: A Era de Esmeralda da TV

Mas em 2001, ainda não estávamos lá. Certamente, South Park introduziu um divertido mascote de cannabis com Towelie, mas ele não ajudou a conquistar novos defensores da legalização medicinal e recreativa. Indiscutivelmente, também não o fez Weeds. Sem dizer que a saga de Nancy Botwin (Mary-Louise Parker), que criou um império suburbano de maconha, não era entretenimento de primeira, mas continuou a se concentrar na criminalidade da cannabis — especialmente em épocas posteriores — sem tentar contar de fato com os estereótipos negativos que o programa retratou.

Enquanto Weeds adotou uma abordagem pré-Breaking Bad para a maconha, no final da década de 2000, a cannabis na televisão começaria a mudar para a forma como é vista hoje. Não estou dizendo expressamente que a eleição presidencial de Barack Obama — que foi muito aberta sobre o uso de maconha na faculdade — ajudou a inaugurar uma nova era de representação da cannabis, como o ‘stoner noir’ de Jonathan Ames, Bored to Death, ou o estranho casal (“the odd couple”) da comédia canábica Broad City, mas não impediu que, pela primeira vez, o governo parecesse estar do lado progressista da futura reforma da lei da maconha.

Essa nova cara da cannabis na TV talvez seja melhor exemplificada pela High Maintenance da HBO (originalmente no Vimeo On Demand). A série segue um entregador de maconha, conhecido apenas como The Guy, enquanto ele faz entregas no atual Brooklyn e Manhattan. O que diferencia a High Maintenance de praticamente todas as outras representações da maconha é que ela expressamente não se concentra em fumar maconha. Em vez disso, está mais interessada nas personalidades e relacionamentos idiossincráticos que The Guy constrói quando se torna um tipo de terapeuta da erva de sua clientela. Esta não é uma comédia ‘stoner’ que glorifica o ato de ficar chapado enquanto dá risadas baratas, mas sim uma antologia intelectual que normaliza a cannabis, observando as inúmeras razões pelas quais os adultos modernos escolhem consumi-la.

Mas à medida que a cannabis se aproxima cada vez mais da legalização federal nos EUA, onde isso deixa um personagem como The Guy, que depende do mercado clandestino? Ele é legítimo, consegue um emprego em um dispensário e continua a ajudar as pessoas? Felizmente, os esforços de legalização, como os de Nova York, vêm com estatutos de licenciamento que favorecem pequenas empresas em vez de grandes corporações, para que pessoas como The Guy não fiquem fora do negócio. Mas como a legalização agora não é uma questão de se, mas quando, o que isso significa para o gênero ‘stoner’ em geral? Muitos filmes e programas de televisão que giram em torno da maconha foram atrelados à ilegalidade da planta. Ao remover esse ponto crucial da narrativa, no entanto, ela pode acabar dando vida nova ao gênero, inaugurando uma nova era de entretenimento ‘stoner’.

Como você pode ver em programas como High Maintenance, a televisão já está se adaptando à mudança da percepção pública da maconha nos Estados Unidos. E com esses novos programas focando mais no impacto positivo da cannabis, a televisão moderna será capaz de desestigmatizar ativamente essa planta incrível que eles ajudaram a demonizar por décadas.

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia em primeiro plano de Ben Sinclair interpretando o personagem The Guy, com uma barba cheia e usando óculos tipos natação com lentes que refletem uma imagem calendoscópica e armação com espinhos metálicos; ao fundo, vê-se adornos religiosos diversos e brilhantes. Imagem: High Maintenance | HBO.

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