Damares e a cartilha de meias verdades

Fotografia da cara de Damares Alves com o dedo indicador apontando para cima. Foto: Valter Campanato | Agência Brasil.

Na contramão do mundo civilizado, texto divulgado pelo Ministério dos Direitos Humanos usa dados convenientes para defender a manutenção da guerra à maconha

Para quem olha de longe, um burro carregado de livros pode parecer doutor. Mas o observador atento, que analisa de perto, vê apenas um quadrúpede cheio de artigos e citações no lombo. Provavelmente essa é a melhor imagem para explicar a cartilha “Os Riscos do Uso da Maconha na Família, Infância e Juventude”, publicada e festejada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

A ardilosa cartilha apresenta um emaranhado de informações pinçadas de artigos científicos — alguns bem ultrapassados — para sustentar seus argumentos proibicionistas, mas não faz nenhuma reflexão socioeconômica ampla a respeito dos dados. Apenas mantém-se fiel aos mesmos argumentos, porém desatualizados, que deram origem à guerra às drogas. Para sanar essa lacuna intelectiva, é fundamental que se teça um raciocínio mais profundo sobre o assunto. Sigamos.

 

Ao contrário do que o senso comum imagina, a principal característica da ciência é a incerteza. Sua função é colocar em dúvida o já sabido. Embora seja acumulativo, o conhecimento científico também é provisório e relativo. Uma teoria científica necessariamente pressupõe uma possível refutação, além de questionamentos sobre seus métodos e crenças. Some-se a isso o fato de que o trabalho científico é limitado por ideologias não científicas. Em nome de religião que eventualmente professe, um cientista pode autocensurar-se, evitando análises que se oponham às suas convicções religiosas. Por outro lado, em prol de determinada opção político-partidária, um cientista social pode fazer interpretações equivocadas de dados para evitar o choque com suas ideias pessoais. Mas a principal interferência na pesquisa científica ocorre antes, na definição de temas e problemas para conseguir financiamentos públicos ou privados. Trocando em miúdos, um estudo pode ser encomendado e pago para chegar a determinado resultado.

Nessa toada, a tal cartilha traz dados de uma pesquisa que afirma ser a maconha causa de aumento nos casos de esquizofrenia. Essa relação, no entanto, não parece ser de causa e efeito. Nota-se, por exemplo, que a partir de 1970 até hoje tem ocorrido um aumento expressivo no consumo e na potência da cannabis, ao passo que o número de esquizofrênicos permanece estável no mesmo período, em cerca de 1% da população mundial. Assim sendo, sob o ponto de vista histórico não há como afirmar que maconha causa esquizofrenia. Outro estudo revela que pacientes com esquizofrenia que fizeram uso da maconha durante a adolescência exibem melhor função cognitiva quando comparados a pacientes esquizofrênicos que não fizeram uso da planta.

Com a mesma seletividade interpretativa, o texto proibicionista aponta a erva como responsável pelo crescimento dos casos de suicídio. Paradoxalmente, o país com uma das maiores taxas de autoextermínio do mundo, o Japão, também é um dos que menos consomem maconha. Além disso, a política repressiva nipônica é muito severa. Para se ter uma ideia, a pessoa flagrada em posse de cannabis para consumo pode pegar até cinco anos de prisão, além de se tornar pária no meio social. Ainda assim, cerca de 20 mil japoneses se matam todo ano por lá. Dessa maneira, impossível afirmar que maconha causa suicídio, ou que a repressão pouparia essas vidas.

Escrita sempre em tom moralista e alarmista, a famigerada cartilha assim apresenta uma de suas missões: “Proteger crianças, adolescentes e toda a população contra os danos da maconha e de outras drogas é ação de inquestionável relevância e ponto de honra do governo federal”. Frase ótima para impressionar espíritos desavisados e predispostos a manter a criminalização da planta, mas que levanta uma pergunta: quantas crianças e adolescentes perderam a vida ou foram internados no Brasil por consumo de maconha? Difícil dizer, já que o uso não mata e internações por esse motivo não são frequentes e costumam ocorrer apenas em famílias desinformadas. Outros dados, contudo, saltam aos olhos. Nos últimos três anos, 2.215 crianças foram mortas no Brasil por policiais durante confrontos em áreas dominadas pelo tráfico. São casos como o das meninas Emily e Rebeca, de 4 e 7 anos, assassinadas na porta de casa no Rio de Janeiro por tiro de fuzil disparado na guerra às drogas. Não bastasse isso, ainda há cerca de 5.500 adolescentes apreendidos no país por tráfico de drogas. Como se vê, Damares quer vender a cura para a infância e juventude, mas não sabe qual é a doença.

De mais a mais, ainda que lance mão de argumentos científicos para sustentar sua tese, a marota cartilha foi elaborada por um governo que não tem o menor respeito pela ciência, exceto quando conveniente. Enquanto o Ministério dos Direitos Humanos gasta dinheiro para divulgar desinformação, o Hospital Sírio-Libanês cria um núcleo de estudos e terapia com cannabis. À medida que a Unicamp investe em estrutura para pesquisa, a Anvisa nega à universidade autorização para cultivo de maconha para fins científicos. Ciência, portanto, não é bandeira do atual governo. O resto é conversa para boi dormir.

Com efeito, mais importante do que o embate entre pesquisas científicas são as experiências práticas. A cartilha da Damares amplifica a voz de pessoas que não consomem e não estudam a fundo a cannabis, mas se esquiva dos usuários e pacientes que poderiam contribuir com testemunhos e vivências em prol do melhor debate. São casos reais e cotidianos que não comportam interpretações de conveniência, já que tratam de vida, assistência e dignidade.

Pergunte à mãe do menino autista e epiléptico que tinha sessenta crises convulsivas por dia antes de conhecer o óleo de maconha, e que agora é um garoto alegre e em desenvolvimento. Converse com o paciente de doença óssea degenerativa que, por conta das dores excruciantes, quase morreu intoxicado com medicamentos opioides que já não faziam mais efeito, e achou na cannabis o alívio seguro para seus suplícios. Indague aquela jovem que passou três anos enfurnada num quarto escuro, sofrendo de depressão profunda e sociofobia, já deteriorada pela inútil terapia tradicional, e após conhecer a cannabis abriu a janela do quarto, deixou a luz entrar e foi celebrar a vida.

Os casos acima, todos verídicos, estão registrados em autos de habeas corpus concedidos pela Justiça para cultivo caseiro da cannabis com fins medicinais. Histórias assim existem aos milhares pelo país. Se fossem engodo para legalização de droga, não haveria quem se aventure a entrar em bocas de fumo controladas por traficantes armados para comprar o remédio que lhe acalma os nervos. Não existiriam enfermeiras arriscando a própria liberdade para levar ensinamentos sobre a erva e insumos para cultivo a quem vive nos grotões mais carentes do país. Mães jardineiras não apoiariam a desobediência civil para tratar seus filhos com uma planta terapêutica. Ativistas não se atreveriam a produzir o óleo da erva de forma clandestina para doar a pacientes necessitados.

Ciência não é nada sem inteligência. Como bem escreveu Shakespeare, até o diabo pode citar as Escrituras quando lhe convém.

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia da cara de Damares Alves com o dedo indicador apontando para cima. Foto: Valter Campanato | Agência Brasil.

Sobre Leonardo Padilha

Leonardo Padilha é advogado canabista, jornalista e especialista em educação. leonardopadilha.advogado@gmail.com
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