A Burrice é Invencível

Fotografia de uma folha de cannabis seca e amarelada, com os folíolos contorcidos, e um fundo escuro. Foto: THCameraphoto.

Como o debate sobre a legalização da cannabis acirra ânimos e expõe a ignorância

No desenrolar daquele medonho programa de rádio, o apresentador deixava os argumentos de lado e destilava ofensas pessoais contra defensores da descriminalização da cannabis, ao que o jovem parlamentar convidado e até então benquisto interveio. “Acho que é importante fazer uma diferenciação. Não necessariamente ser favorável a um tratamento legal diferente do que a gente tem hoje — que claramente não tá dando certo, significa ser a favor das drogas.” Naquele momento houve uma hecatombe nos neurônios do entrevistador.

“O senhor defende a descriminalização?”, interrogou indignado o jornalista. Sem dar qualquer chance de resposta ao interlocutor, disparou. “Não faça isso, deputado. Não faça isso. O senhor está cometendo um crime. O senhor tá pregando anarquia.” Depois disso o que se viu foi um ameaçador dedo em riste e o que se ouviu foi o timbre transtornado do apresentador. Aos urros e incapaz de refutar qualquer argumento que o político apresentava, limitou-se a enxovalhar ao vivo o desavisado visitante.

Esse tipo de reação disparatada e desconexa, que costuma ser frequente no debate público de temas polêmicos, já foi estudada pela psicologia e ganhou nome pomposo: dissonância cognitiva, expressão usada para descrever as sensações de desconforto que resultam de crenças contraditórias no mesmo sujeito.

O psicólogo Leon Festinger propôs a teoria da dissonância cognitiva para explicar como as pessoas tentam alcançar consistência e harmonia internamente. Ele sugeriu que os indivíduos têm uma necessidade intrínseca de garantir que as suas crenças e comportamentos sejam coesos e lógicos. Convicções inconsistentes ou conflitantes levam à desarmonia interior, que todos se esforçam para evitar, seja como for. Quanto maior a força da dissonância entre as cognições internas, mais pressão existe para aliviar as sensações de desconforto. Essa inquietação toda pode eclodir de diversas formas, desde uma discreta sudorese a berros histéricos e agressivos de negação, mesmo diante de fatos incontestáveis.

É sabido por todos que o cigarro faz muito mal à saúde. Diante disso, um fumante pode manter os cigarros diários, mesmo tendo total consciência dos perigos. Para tanto, só precisa eliminar a dissonância dentro de si. Ele pode, por exemplo, decidir que a conduta vale a pena em termos de riscos e recompensas. Ou pode minimizar as desvantagens potenciais, como convencer-se de que os efeitos negativos do cigarro têm sido exagerados pela ciência. Talvez ainda sugestionar a si próprio no sentido de que, se largar o vício, vai ganhar peso e sofrer de mais graves problemas de saúde. De um jeito ou de outro, ele elimina o desconforto das incoerências internas para manter-se fiel ao seu comportamento destrutivo.

“Que debate sério o que, deputado?! Tá ali o corpo estendido no chão!”, insistia aos gritos o descontrolado apresentador. Mas sempre vinha a réplica. “O corpo no chão é fruto da guerra às drogas. Quantas pessoas morrem pelo comércio de drogas legais nos Estados Unidos?”, contemporizava o outro.

 

 

O jornalista tinha diante de si naquele momento um dado fático que deve tê-lo aturdido. De forma simples, foi-lhe mostrado que a droga em si não é a causa mais importante das mortes. A tragédia social é fruto da repressão violenta e do crime organizado que, após a proibição, ganhou de bandeja o lucrativo mercado. Sentindo as próprias certezas abaladas, aquele homem tinha algumas opções.

Ele poderia se interessar em entender os argumentos do convidado. Nesse caso, certamente o conflito das ideias rivais com as suas próprias lhe causaria enorme desconforto, que ele poderia tentar amenizar acreditando que aquele processo doído o faria crescer em sabedoria.

Por outro lado, talvez o mais comum, o apresentador levaria a discussão até o ponto em que a violência da dissonância entre as suas crenças e a realidade revelada tornaria impossível o prosseguimento e, de forma mais ou menos educada, encerraria a peleja.

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Quando a dissonância entre as próprias crenças e o mundo novo que se apresenta subitamente torna-se uma dor insuportável, expondo as vísceras da mediocridade do sujeito e demolindo a racionalidade que ele imaginava ter, tudo pode acontecer.

“Corta o microfone dele! Corta o microfone dele! Tem que gritar, sim, porque tu não tens responsabilidade!”, pipocou o selvagem apresentador. E com essa, seus ouvintes foram dormir. Em off, as hostilidades e injúrias ganharam corpo. “Tu não tens experiência de vida nenhuma, rapaz. Tu és um imbecil! Tu és um coitado!”. O jovem parlamentar, menos experiente e mais inteligente, àquela altura já havia entendido que a ignorância é remediável, mas a burrice é invencível.

George Orwell, no romance 1984, um clássico distópico da literatura, introduz o conceito de “duplipensar”, o ato de aceitar duas crenças mutuamente contraditórias como simultaneamente verdadeiras. Como se sabe, a distopia é o lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; trata-se de antiutopia.

O livro foi originalmente publicado em 1949, poucos anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. À época o autor já apontava aonde o caminho dos extremismos autoritários pode nos levar. Hoje, com formadores de opinião dissonantes e “duplipensantes” por todo lado, às vezes surge a impressão de estarmos quase lá.

Não devemos perder de vista, contudo, que a literatura é fruto da cognição humana, que quase tudo pode. Se nosso cérebro é capaz de empreender maravilhas, materializadas inclusive em obras distópicas, muito mais pode fazer para recuperar e evoluir nossa humanidade. A inteligência é a força motriz do homem, é o que o diferencia dos outros animais. Tá aí o fatídico programa de rádio que não me deixa mentir.

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#PraCegoVer: Fotografia de uma folha de maconha seca e amarelada, com os folíolos contorcidos, e um fundo escuro. Foto: THCameraphoto.

Sobre Leonardo Padilha

Leonardo Padilha é advogado canabista, jornalista e especialista em educação. leonardopadilha.advogado@gmail.com
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