Tráfico é inconstitucional

Uma das principais garantias constitucionais é o princípio da reserva legal. Segundo este, para ser considerado crime, antes de praticada uma conduta, ela deve estar definida anteriormente em lei. Isto quer dizer que a descrição da ação ou omissão deve ser bem clara.

Trata-se de direito humano de primeira geração, previsto como direito natural, o que significa que existirá em qualquer tempo e lugar como direito universal. Insculpido na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o princípio da reserva legal está garantido no inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição Federal e no artigo 1º do Código Penal Brasileiro:

“XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;”

A lei 11343/2006 não define o crime de tráfico, pelo contrário ela cerca com 18 verbos as pessoas como traficantes, veja como é o artigo 33 da lei de drogas:

“Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa”.

Observe que o tipo penal do artigo 33 é um cerco de 18 verbos, 18 ações. A finalidade, que é a intenção de todo crime, é uma confusão irracional, chegando ao ponto de colocar entre vírgulas, no final da descrição do tipo “ainda que gratuitamente”. Assim, o cerco é total pois, mesmo com os dicionários explicando que tráfico é comerciar, mercadejar, para o comércio, um negócio, a lei criminaliza um tráfico gratuito. Um comerciante que não vende, mas dá suas mercadorias. Um tipo penal contraditório, irracional e totalmente indefinido, portanto, completamente inconstitucional.

Mas na prática, é isso mesmo que acontece, pois ninguém vai preso quando os barões do negócio são flagrados, como aconteceu há pouco tempo no Brasil com a apreensão de meia tonelada de cocaína encontrada num luxuoso helicóptero pertencente a um latifundiário. Esse fato só vem escancarar a falácia dessa guerra mentirosa às drogas, que só prende no Brasil jovem, negro e pobre. São esses os criminosos do capitalismo brasileiro? Defendo o abolicionismo penal da mesma forma que luto contra esse capitalismo cognitivo vídeo financeiro, pois deitam suas raízes no mesmo capitalismo industrial.

A multidão de jovens que tomam as ruas e praças do mundo está conseguindo fissurar e rachar esse sistema. Desconstruir esse discurso criminal, usado como solução para questões políticas, passa por denunciar o sistema penal e toda a mentirosa guerra às drogas. As pessoas precisam saber que quase todos os presos por tráfico foram pegos desarmados e com quantidade ínfima de drogas tornadas ilícitas. Milhares estão presos com quantidades que sequer chegam a duas gramas de cocaína. As quantidades apreendidas com os chamados traficantes de maconha são ridículas, não chegam sequer a 100 gramas da erva da paz.

Denunciar esse mentiroso sistema penal é o caminho do abolicionismo penal, como aconteceu na revolução francesa com a queda da Bastilha pelos mesmos que aplaudiam em praças públicas as execuções da inquisição.

Sobre André Barros

ANDRÉ BARROS é advogado da Marcha da Maconha, mestre em Ciências Penais, vice-presidente da Comissão de Direitos Sociais e Interlocução Sociopopular da Ordem dos Advogados do Brasil e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros
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