“Todo preconceito social foi jogado na maconha”, diz Drauzio Varella

Fotografia em primeiro plano do Dr. Drauzio Varella sentado e logo atrás, ao fundo, uma estação de trabalho onde vemos um monitor que reproduz a capa da série, em que traz o desenho de uma folha de maconha atrás do texto “Drauzio Dichava” em branco, com um fundo de cor salmão.

Em entrevista ao jornal O Globo, Drauzio Varella defende que o fato de a maconha ser ilegal leva a uma ignorância generalizada sobre a planta. Para o médico, somente a descriminalização poderá quebrar o tabu de se discutir sobre a maconha abertamente

Onde há maconha, há polêmica. E Drauzio Varella sabe disso. O médico oncologista, que tem um canal no Youtube para debater variados temas de saúde, lançou há dias nessa plataforma a série “Drauzio dichava”: cinco episódios nos quais ele aborda a história da Cannabis sativa, o preconceito social e racial associado a ela, seus efeitos no cérebro, como e por quem ela é usada hoje e o impacto da política de “guerra às drogas” sobre a saúde da população. O primeiro episódio já soma mais de 700 mil visualizações.

Em entrevista exclusiva ao Globo, o médico defende que o fato de a maconha ser ilegal leva a uma ignorância generalizada sobre a droga. Somente com a descriminalização, diz ele, será possível quebrar o tabu de se discutir sobre a maconha abertamente.

— A maconha foi apresentada à sociedade brasileira como a “erva do diabo”, muito associada aos negros. Todo preconceito social foi jogado na maconha — afirma ele.

Para Drauzio Varella, a estratégia de “tolerância zero” em relação às drogas, adotada no Brasil, é fadada ao fracasso.

— Em relação às drogas, a estratégia adotada é a de tolerância zero. Eu acho ótimo. Se você impede que as crianças e os adolescentes usem droga, não vai haver nenhum usuário. Mas isso é real? É possível? Parece a época em que o papa (João Paulo II) bradava contra a camisinha.

Confira abaixo a entrevista na íntegra.

O GLOBO: Por que, na série, você substitui o termo “uso recreativo” por “uso adulto”?

O termo “uso adulto” tem ganhado mais espaço, porque esse termo já reforça que não estamos discutindo o uso por crianças e adolescentes. Quem está com o cérebro em formação não pode fumar maconha, e pronto. Porque a gente não sabe as consequências a longo prazo.

O que te levou a fazer a série “Drauzio dichava”?

O que me levou a fazer foi o seguinte: maconha é proibido, não é? Não se pode usar, vender… é ilegal. Quando se tem uma coisa ilegal, não se consegue lidar com ela. Só que a quantidade de pessoas que fuma maconha hoje é muito grande. A meninada fuma direto. E não são só eles. Tem muita gente da minha geração que fuma maconha. Mas o fato de não poder discutir esse problema faz com que muitos acreditem que fumar maconha não faz mal, ou então que se trata do pior dos males. Há todo tipo de mito. O fato de não poder discutir dificulta tudo.

Com essa série, eu tinha a ideia de fazer uma discussão sobre isso. Eu só não sabia que ia ter tamanha aceitação e um número de acessos tão grande em um intervalo de tempo tão curto.

Drauzio Dichava: assista a série de Drauzio Varella sobre uso adulto da maconha

É mais fácil fazer uma série sobre esse assunto na internet do que na televisão?

Não sei te dizer. Eu acho que é mais fácil porque a internet dá mais liberdade. Mas também eu nunca cheguei a propor na televisão esse tipo de série.

O que você pensa quando ouve a seguinte afirmação: “A maconha é a porta de entrada para outras drogas”?

Isso é besteira. Está demonstrado em vários estudos que isso não é verdade. Se há uma porta de entrada para outras drogas, ela é o álcool e o cigarro. Há trabalhos que mostram que fumantes têm um risco maior de desenvolver vício por outras drogas.

A droga é uma questão pessoal. Por que você começa a usar uma droga e fica dependente dela? Por muitos fatores. Envolve os mediadores cerebrais que você produz, a sua genética, fatores sociais, com quem você anda, os lugares que você frequenta, as situações pelas quais você passa. A moda também interfere. São tantos detalhes.

Se alguém cheirar cocaína uma vez a cada seis meses, tudo bem? Provavelmente, sim. E existe gente assim, que cheira ocasionalmente, ou que fuma um baseado ocasionalmente. Só que, quando a gente usa uma droga pela primeira vez, a gente não sabe onde vai parar. Não sabemos se as nossas condições pessoais — todas essas que eu citei — não vão nos levar a usar essa droga todo dia. No caso do álcool, por exemplo, quanta gente bebe? Quase todo mundo bebe de vez em quando. Eu bebo de vez em quando. Mas tem gente que bebe todo dia, e vai aumentando a dose cada vez mais. Por que isso acontece com algumas pessoas e não aconteceu comigo? Por sorte. Quando eu bebi pela primeira vez, eu não sabia se teria esse controle. E mesmo assim eu bebi.

Você avalia que há um tabu em relação especificamente à maconha?

Sim, e isso tem raízes sociais. A maconha foi apresentada à sociedade brasileira como a “erva do diabo”, muito associada aos negros. Todo preconceito social foi jogado na maconha. Eu lembro que, quando eu era adolescente, diziam que cocaína era droga de rico, e maconha, de engraxate. Cocaína era da elite, era cara. Maconha era uma droga mais barata, mais acessível à população mais pobre.

E olha o que aconteceu com a cocaína hoje, não custa mais nada, é acessível a qualquer um. E depois o crack, que tem muito risco de provocar compulsão.

Por quê?

A medicina conhece muito mal a compulsão — seja qual for a compulsão: por drogas, por sexo, por compras. Mas uma coisa a gente sabe bem: quanto mais curto é o intervalo de tempo entre a ação e a recompensa, maior é o potencial compulsivo. Você não conhece ninguém viciado em loteria federal, não é? Por quê? Porque você compra o bilhete na segunda-feira, e a loteria vai correr no sábado. Agora, você conhece gente viciada em caça-níquel, porque você põe a moeda, aperta um botão e o resultado sai imediatamente. É isso que provoca a compulsão.

As drogas que dão o efeito muito rapidamente e de forma intensa têm mais potencial compulsivo. É o caso da cocaína e, ainda mais, do crack. Na maconha o potencial é menor, porque a pessoa dá uma tragada e o efeito ainda demora a vir. Até usam o verbo “pegar” para isso. Às vezes a tragada “pega”, às vezes “não pega”. Com o crack sempre pega. Por isso a proporção dos que usam maconha ocasionalmente é muito grande.

O Brasil insiste na guerra às drogas como política. Quais são as consequências disso?

É uma catástrofe total esse tipo de política. É uma tragédia. O que precisa mais acontecer para a gente saber que isso não dá certo? Quadrilhas, crime organizado, assassinatos… deu certo isso? E quanto mais você reprime, mais acesso à droga as pessoas têm e por um preço mais baixo. Essa política não combate o uso da droga e, ainda por cima, criou uma cena de violência absurda na sociedade brasileira, com a qual nós convivemos até mesmo nas cidades pequenas hoje. Então deu errado, isso é claro. Além de dar errado, o fato de colocarmos tudo na clandestinidade nos impede de atacar esse problema de outras formas.

Como você avalia a educação de crianças e adolescentes sobre drogas hoje?

Em relação às drogas, a estratégia adotada pelo governo é a de tolerância zero. Eu acho ótimo. Se você impede que as crianças e os adolescentes usem droga, não vai haver nenhum usuário. Mas isso é real? É possível? Parece a época em que o Papa (João Paulo II) bradava contra a camisinha. Ele dizia que o sexo nunca deveria ser feito antes do casamento e nunca fora dele. Maravilha, não é?

Faltou combinar com os russos.

É, essa é ótima. Faltou combinar com os russos. A gente acabaria com a Aids se fosse assim. É a mesma coisa com as drogas: bradam “tolerância zero”. Tudo bem, mas isso é viável? Acontece na prática? As autoridades passam a viver num mundo irreal. Essas políticas feitas atrás de escrivaninhas de gabinete são fadadas ao fracasso, porque não levam em conta a diversidade humana, as condições sociais… nada.

Para você, como o poder público tem que lidar com a maconha? Deve descriminalizar? E depois?

Que temos que descriminalizar eu não tenho dúvida. Isso é uma questão de saúde pública. Não é questão de polícia. Agora, como vamos fazer para combater o tráfico e como vamos fazer para que os dependentes químicos sejam acolhidos, isso vamos ter que aprender e isso também vai variar de droga para droga. Uma coisa é alguém que fuma maconha, outra coisa é alguém que está na cracolândia. São drogas completamente diferentes. Por isso quando ouço alguém dizer que uma pessoa está “no mundo das drogas”, penso logo: “Não existe esse mundo”. Cada droga tem suas características. Não existe uma “política de drogas”. Toda vez que eu leio isso, eu acho estranho. São substâncias com efeitos farmacológicos tão diferentes.

Uma pessoa pode ter um estilo de vida saudável e fumar maconha? Ou são incompatíveis?

Acho que depende. Acho que quem fuma todo dia não tem condição de levar uma vida saudável. Assim como quem fuma cigarro não tem. A minha preocupação maior é com a falta de conhecimento. Na série, quando eu falava com alguém que fumava todo dia que isso se caracterizava como dependência química, era comum a pessoa rebater dizendo que não podia ser dependência química porque maconha é natural. Ora, heroína também é natural.

Você fumou cigarro durante 20 anos. Já disse em entrevistas que parou de vergonha… afinal, era um oncologista fumante. Como você compara a relação da população com maconha e com cigarro?

Essa ignorância que existe em relação à maconha é fruto da proibição. Mas em relação ao cigarro, é diferente. Houve uma combinação do complexo industrial, que impediu que as informações sobre os malefícios do cigarro fossem conhecidas pela população. Eu acho que este foi o maior crime da história do capitalismo mundial. Uma estratégia de impedir a circulação de informações, usando o poder econômico, porque eles dominavam os meios de comunicação. A gente não sabia os perigos do cigarro. Ao contrário, a publicidade apresentava o tabaco como algo maravilhoso, moderno. Em relação á maconha, é outra história. As pessoas não têm o conhecimento porque não é discutido.

“Acho que está na hora de a gente estruturar para a maconha uma estratégia similar à do cigarro. Quando eu era jovem, 60% dos brasileiros fumavam. Hoje, são 10%. Por quê? Porque o cigarro é uma droga legal e foi possível educar as crianças nas escolas”.

O que mais te surpreendeu ao fazer a série?

O que me surpreendeu mais foi, primeiro, o número de usuários, que é muito maior do que eu pensava. E olha que eu tenho contato com cadeia há mais de 30 anos. Em segundo lugar, o que me surpreendeu foi a ignorância dos que usam em relação à psicofarmacologia da maconha. Eles fumam achando que não vicia, que não tem nenhum problema. Também fiquei impressionado com a existência dessas novas tabacarias. Nesses estabelecimentos, sempre se vendeu seda, papel que podia ser usado para cigarro e outras drogas. Mas ficava num cantinho, quase escondido. Agora, há tabacarias especializadas em itens para o uso de maconha. Eu não sabia que isso existia. Isso faz parte da hipocrisia social. Todo mundo que vê essas tabacarias sabe que é para fumar maconha. Mas a gente finge que não existe.

Acho que está na hora de a gente estruturar para a maconha uma estratégia similar à do cigarro. Quando eu era jovem e estava na faculdade de Medicina, 60% dos brasileiros acima dos 15 anos fumavam. Hoje, são 10%. Por quê? Porque o cigarro é uma droga legal, que pode ser comprada em qualquer padaria e foi possível educar as crianças nas escolas, falar dos problemas do cigarro, a televisão pode mostrar, os médicos dão entrevista abertamente.

Hoje, com uma população muito menos escolarizada, nós fumamos menos do que nos Estados Unidos e do que todos os países europeus. Se quem fumasse tabaco fosse criminalizado aqui e não tivéssemos feito as políticas públicas que fizemos, isso não teria acontecido.

O crack, por exemplo, surgiu nos EUA nos anos 80. Estava na cara, para mim e para vários outros médicos, que o crack ia chegar ao Brasil. Afinal, por que não chegaríamos? Nós estamos até mais perto dos produtores de cocaína do que os EUA. Pois bem, o que nós fizemos? Nada. E deu no que deu. O certo era termos começado a ensinar sobre o crack nas escolas nos anos 80: dizer às crianças como essa droga funcionava, que muitas pessoas nos EUA estavam vendendo tudo em casa para comprá-la, que o potencial compulsivo era altíssimo. Mas não fizemos isso, o crack chegou aqui e nos pegou de surpresa. Como se fosse possível falar em surpresa numa situação dessas.

#PraCegoVer: fotografia (de capa) em primeiro plano do Dr. Drauzio Varella sentado e logo atrás, ao fundo, uma estação de trabalho onde vemos um monitor que reproduz a capa da série, em que traz o desenho de uma folha de maconha atrás do texto “Drauzio Dichava” em branco, com um fundo de cor salmão. Créditos da foto: Uzamaki Comunicação.

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