Primeiro remédio à base de maconha aprovado no país chega ao mercado com preços altos

Caixa de medicamento, onde se lê no topo "Mevatyl - tetraidrocanabinol 27 mg/ml, canabidiol 25 mg/ml", no centro da embalagem uma tarja preta e a escrita em branco "Venda sob prescrição médica" e abaixo "Solução em spray para pulverização bucal, uso oral, uso adulto, contém 3 frascos de 10 ml", ao lado de um frasco do mesmo destampado.

O medicamento, aprovado há mais de um ano pela Anvisa, enfim chegará às farmácias brasileiras e, como já se esperava, com um preço que poucos poderão pagar. Para muitos pacientes e médicos, a produção caseira do óleo de maconha ainda continuará sendo a melhor opção. As informações são d’O Globo.

Um ano após a aprovação do primeiro medicamento à base de cannabis no Brasil, o remédio, indicado para pessoas com esclerose múltipla, deve chegar às farmácias em março, mas seu preço elevado faz médicos e pacientes questionarem quem conseguirá, de fato, ter acesso a ele. Cada embalagem custará, em média, R$ 2.500 — o preço máximo que poderá ser cobrado é R$ 2.837,40 —, com três frascos que cobrem o tratamento por pouco mais de um mês. Por um valor quatro vezes menor, alguns pacientes e neurologistas manipulam óleos de cannabis e conseguem, segundo eles, efeito semelhante. Por outro lado, os fabricantes argumentam que só um cultivo profissional da planta, com controle de qualidade na produção do fármaco, é capaz de garantir que cada frasco tenha propriedades terapêuticas idênticas e adequadas.

Chamado no país de Mevatyl — e aprovado em outras 28 nações com o nome de Sativex —, o medicamento é indicado para quem sofre de espasticidade por causa da esclerose múltipla. Trata-se de uma rigidez em determinadas partes do corpo, principalmente nas pernas.

Segundo Andréa Viana, gerente médica da Ipsen, empresa que conseguiu o registro do remédio junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em janeiro de 2017, a previsão é de que o Mevatyl comece a ser vendido no país em pouco mais de um mês. Originalmente, a comercialização era esperada para julho do ano passado. Depois, o prazo passou a ser até fins de 2017.

— O medicamento já está no Brasil, já foi importado. Mas os trâmites burocráticos levaram mais tempo do que imaginávamos — afirma ela. — Houve atraso de precificação, depois levou tempo para a importação ser aprovada, e o remédio precisou passar por controle de qualidade na saída do local de origem, o Reino Unido, e na entrada no país de destino, o Brasil.

Quanto ao preço, não há previsão de que ele venha a diminuir. Os valores foram definidos em julho passado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed).

— Por enquanto, não há como abaixar o preço — diz Andréa. — É o mesmo praticado em outros países em que o medicamento é comercializado.

No último dia 7, a Ipsen organizou no Rio uma apresentação do remédio à classe médica local. Para mostrar a atuação da droga e como administrá-la, vieram representantes da GW Pharmaceuticals, empresa britânica que desenvolveu o medicamento, e médicos internacionais que já têm familiaridade com o remédio.

Uma dessas especialistas foi a neurologista Lucienne Costa-Frossard, do Hospital Ramón y Cajal, em Madri, na Espanha, que usa o fármaco para tratar pacientes com esclerose múltipla há sete anos e diz ter ao menos cem atualmente em tratamento. No país europeu, o Mevatyl é aprovado há quase uma década.

— O retorno que tenho é de um medicamento bem tolerado e com efeitos secundários de leves a moderados, que se mostra eficaz não só para espasticidade, mas para outros sintomas relacionados, como alterações do sono e da bexiga e espasmos dolorosos — destaca a médica.

Manipulação caseira

A rotina de utilização é individualizada: cada paciente precisará de quantidades diferentes de doses diárias, que podem variar de uma a 12 — o máximo que um paciente pode usar ao dia. Cada frasco tem 10 ml, o equivalente a 90 doses. Lucienne explica que a maioria dos pacientes precisa de cinco a sete doses diárias, o que faz com que uma caixa dure de 30 a 45 dias. Ela defende a importância de um medicamento à base de cannabis produzido em laboratório, seguindo controles rígidos de qualidade.

— A manipulação caseira é perigosa. Implica uma pessoa tomar uma série de substâncias não controladas, que podem ter efeitos prejudiciais à saúde — afirma a médica.

No entanto, o designer Gilberto Castro, diagnosticado com esclerose múltipla há nove anos, cultiva cannabis para fins medicinais em casa há cinco. Com o uso da planta, por meio do fumo e de óleos produzidos por ele, diz ter reduzido muito os efeitos colaterais provocados pelos medicamentos que antes tomava para tratar os sintomas da doença. Além disso, passou a economizar R$ 600 mensais. Por esses motivos, Gilberto diz preferir consumir a planta a um remédio.

— Para quem não pode plantar ou não confia no uso da cannabis medicinal, pode ser uma boa opção. Eu até experimentaria por curiosidade. Mas, hoje, tenho um tratamento adequado às minhas necessidades — conta.

Mevatyl é o primeiro medicamento à base de cannabis aprovado pela Anvisa no Brasil. Foto: divulgação.

Todo o uso da cannabis por Castro é acompanhado por profissionais de uma universidade em São Paulo. E o designer rebate as críticas de que a manipulação caseira traga riscos. Castro diz ter aprendido uma forma de extração com a qual consegue manter as propriedades da planta e as quantidades necessárias em cada óleo. Ele tem, inclusive, alguns equipamentos que a instituição emprestou para a produção caseira. Mas vê com bons olhos a existência de um remédio, aprovado pela Anvisa, que tenha como princípio ativo compostos extraídos da planta.

— O fato de as pessoas verem numa farmácia um medicamento que usa cannabis em sua composição pode ajudar a diminuir o preconceito — acredita.

Diretor médico da Associação Brasileira para Cannabis (Abracannabis) e da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), o neurologista Eduardo Faveret lamenta que poucos poderão pagar pelo tratamento com o Mevatyl, por conta do preço. Ele diz, ainda, que hoje já é possível obter um efeito como o desse remédio por meio da combinação de óleo de canabidiol e óleo de THC, os dois compostos usados na produção do medicamento. Com essa manipulação “caseira”, um tratamento de três meses sai por cerca de R$ 1.500.

— A vantagem de administrar os óleos é que, além de ser mais barato, pode-se variar um pouco a proporção de cada composto de acordo com o que o paciente precisa mais, de forma individualizada. Eu nem fui a fundo (para pesquisar a possibilidade de prescrever o remédio aos pacientes) quando vi o preço, porque seria mais de R$ 2 mil cada embalagem, com uma quantidade relativamente pequena para um adulto. Então, para determinadas pessoas, seria necessário comprar mais de uma caixa por mês — afirma Faveret.

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Também médico do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer, ele avalia que apenas uma parcela mínima vai se beneficiar do medicamento.

— Sei que muitos médicos vão querer prescrever o Mevatyl porque ele tem registro na Anvisa, e poucos são os que manipulam óleo de cannabis. Mas quem vai poder pagar por isso? Só por meio de ações judiciais — analisa.

Além da produção caseira desses óleos, feita por associações e pacientes, existe pelo menos um óleo vendido no Brasil por uma empresa canadense de biofarmacologia, a MedReleaf. O produto, batizado de Balance, contém 50 ml e sai a US$ 90. Somado o valor da importação, totaliza US$ 110, o que equivale a aproximadamente R$ 360. Em geral, dá para um mês de tratamento, dependendo da prescrição do médico.

— No nosso cultivo, feito no Canadá, há uma planta-mãe, que é clonada e fornece material genético para as outras plantas. Assim, garantimos que todas terão as mesmas propriedades — afirma o representante da empresa no Brasil, Thiago Callado. — No Canadá, esse óleo é regulado como medicamento, então há controle de toda a cadeia produtiva. É assim que garantimos o padrão em todos os frascos.

Brasil tem 35 mil pessoas com esclerose

A esclerose múltipla é considerada rara, mas é difícil quem não conheça pelo menos uma pessoa com o diagnóstico. Na última semana, a atriz Ana Beatriz Nogueira, de 50 anos, revelou que convive com a doença há quase uma década, tendo sido diagnosticada enquanto gravava a novela “Caminho das Índias”. Outro caso famoso é o da atriz Claudia Rodrigues, de 47, que descobriu a doença aos 30.

O Ministério da Saúde estima que existam hoje 35 mil brasileiros com a doença. De acordo com levantamento da Federação Internacional para Esclerose Múltipla (MSIF, na sigla em inglês), a média global de prevalência é de 33 casos por 100 mil habitantes.

No momento do diagnóstico, os pacientes são, geralmente, jovens, estando entre os 20 e os 40 anos. A doença acomete duas vezes mais mulheres do que homens. E, não raro, o estigma faz com que muitas pessoas demorem a lidar bem com o fato de terem esclerose.

A doença não tem cura, e o tratamento consiste em atenuar os efeitos e desacelerar sua progressão. Trata-se, tradicionalmente, com remédios imunomoduladores e imunossupressores.

A esclerose pode se manifestar por meio de diversos sintomas, como depressão, fraqueza muscular, alteração da coordenação motora, dores articulares e disfunção intestinal e da bexiga. Um dos mais comuns é a espasticidade, isto é, a rigidez de uma parte do corpo, que afeta principalmente as pernas, e a incapacidade do paciente de relaxar esta parte de forma voluntária. É este sintoma o alvo do primeiro remédio à base de cannabis aprovado no país.

A doença é autoimune: o próprio sistema imunológico da pessoa identifica o revestimento dos neurônios — chamado de bainha de mielina — como um agente estranho e passa a atacá-lo. Isso dificulta o processo de transmissão dos impulsos nervosos.

Ao contrário do que muitos pensam, a esclerose múltipla raramente leva à demência. As principais consequências são físicas, mas também pode haver problemas de cognição e raciocínio mais lento.

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