RACISMO, MACONHA E PM

Ilustração que mostra uma pessoa negra agachada, com as mãos no rosto, um pano branco no colo, cicatrizes de açoites nas costas e uma corrente presas à perna, que está amarrada a uma favela que se vê ao fundo, em nanquim branco e preto, onde também pode-se ver um helicóptero da policia que sobrevoa. Drogas.

O embate entre a polícia, suas leis e a população negra das terras tupiniquins não é de hoje e começou quando o Brasil ainda recebia imigrantes portugueses. Entenda como a criação da Guarda Real deu origem a uma perseguição que começou na escravidão e dura até os dias de hoje, em comunidades pelo Brasil, no texto da semana do advogado e ativista André Barros.

Em 1808, quando 15 mil portugueses desembarcaram na Praça XV, centro do Rio de Janeiro, fugindo de Napoleão (que ameaçava cortar a cabeça do rei), junto às bagagens, trouxeram os cartórios, um dos quais era a “Intendência Geral de Polícia”. Teriam supostamente sentido “temor” ao se depararem com a maior população escravizada no mundo. Foi sob o argumento do “medo branco” que criaram a Intendência e, no ano seguinte, a Guarda Real. No entanto, esse argumento é falso, se recordarmos que os portugueses é que eram os algozes de um sistema violentíssimo: os negros é que tinham pavor da escravidão!

A nova polícia criada em 1809 é considerada a primeira polícia militar, pois tinha o papel de realizar um policiamento ostensivo e era paga pelo intendente através dos impostos por ele cobrados. Como não existia propriamente uma lei criminal brasileira, a polícia não poderia coibir condutas, atos criminosos: esta é a cabal demonstração de que nasceu para punir, controlar mais ainda e criminalizar os negros escravizados. A Guarda Real, formada inicialmente pelos capitães-do-mato, patrulhava as ruas para manter os escravos “na linha”, proibindo reuniões e, principalmente, fazendo o mesmo que seus antecessores capitães-do-mato: capturar os escravos que buscavam sua liberdade. A diferença é que a recompensa passava a ser paga pelo Intendente, através de impostos, e não mais pelos fazendeiros.

O posto de capitão-do-mato, peça chave de todo o sistema social punitivo escravocrata brasileiro, foi criado em 1625 e só foi extinto oficialmente em 1820. Porém, como acabou se tornando muito dispendioso, esse posto deixou de interessar aos fazendeiros. Acabaram por integrar a polícia militar que nascia no Brasil. Foi assim que os capitães-do-mato levaram para a origem da PM brasileira 195 anos de açoite, chibata, escravidão, mutilação e genocídio.

A Guarda Real era uma polícia de costumes, que criminalizava os negros pela celebração de sua religião, por vadiagem e mendicância, condutas posteriormente previstas como “Dos crime policiaes”, na parte IV do Código Criminal do Império que entrou em vigor em 8 de janeiro de 1831. O uso da maconha pelos escravos também estava dentre os hábitos de sua cultura perseguida pela PM. Tanto que foi criminalizada um ano antes no primeiro Código Criminal brasileiro, em 4 de outubro de 1830, através do § 7º da Lei de Posturas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. O cunho racista escravocrata desta lei municipal é demonstrado por sua sanção, que estabelecia 3 dias de cadeia para os escravos que usassem o “Pito do Pango”, denominação da lei para maconha.

Emblemático da enorme violência do regime racista escravocrata foi o artigo 60 do primeiro Código Criminal brasileiro, que estabelecia que os escravos poderiam levar no máximo 50 chicotadas por dia. Antes disso, para um pequeno delito – porém frequente, já que andavam descalços -, como “furto de sapatos”, eles recebiam de 100 a 400 chicotadas. Este artigo 60 é a marca histórica do direito penal brasileiro.

É importante recordar as raízes de nosso sistema penal punitivo racista quando ocorrem as atuais incursões da polícia militar nas comunidades do Rio de Janeiro,atirando desvairadamente em pleno horário escolar. Essas ações baseiam-se na ideia de que existe uma guerra em curso, onde os moradores negros das favelas são considerados inimigos. Essa imagem é determinante na construção de uma das cidades com a maior desigualdade social do planeta, onde a polícia mais mata jovens, negros e pobres.

Ilustração de Capa: Carlos Latuff

 

Sobre André Barros

ANDRÉ BARROS é advogado da Marcha da Maconha, mestre em Ciências Penais, vice-presidente da Comissão de Direitos Sociais e Interlocução Sociopopular da Ordem dos Advogados do Brasil e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros
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