PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E TRÁFICO DE MACONHA

Inocente até que se prove o contrário? Nova decisão do STF poderá abarrotar, ainda mais, de consumidores e possíveis vendedores de maconha os já superlotados presídios brasileiros. Entenda mais sobre a recente mudança do Supremo nas palavras de André Barros, advogado, ativista e colunista da Smoke Buddies.

Recentemente, o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, por 7 votos a 4, que a condenação em qualquer tribunal estadual de justiça, o segundo grau, bastaria para colocar alguém na cadeia.

A decisão fere a garantia da presunção de inocência, consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal do Brasil. Não cabe emenda a tal garantia, ela não pode ser modificada, é cláusula pétrea estabelecida no inciso LVII do artigo 5º da Carta Política do país.

Ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória. Tal direito dos direitos existe para proteger cada um de nós. Não posso ser considerado culpado antes da decisão condenatória do último recurso da defesa. A presunção de um acusado não é ser culpado, mas, pelo contrário, é ser considerado inocente. Qualquer pessoa tem essa garantia e foi exatamente esta que foi ferida pela vexatória decisão da Suprema Corte.

O argumento é que o fato está esclarecido com a decisão de segunda instância, no colegiado de um tribunal estadual de justiça, e ao tribunal cabe apenas colocar ao fato esclarecido o direito.

No tráfico de maconha, por exemplo, isto não é verdade. Segundo a terrível súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a restrita palavra dos policiais é o bastante para uma condenação. Só que existe a valoração jurídica da prova apresentada. Nas condenações por tráfico de drogas, por exemplo, a seguinte história é repetida: o policial diz que recebeu informação do disque-denúncia / 190 de que em determinado local um homem negro de bigode está traficando drogas. E que, chegando ao local, avistou exatamente tal pessoa, e, após revista pessoal, foi encontrada determinada quantidade de maconha, normalmente ínfima, e, portanto, o crime estaria comprovado. Os depoimentos dos policiais seriam presumidamente verdadeiros, por serem funcionários públicos, e, portanto, seria desnecessária qualquer prova em contrário. Raríssimas vezes alguém é preso comprando, em regra, a polícia argumenta que focaram em quem estava vendendo e que o comprador fugiu. O suposto vendedor é preso e recebe penas que ultrapassam 4 anos de reclusão, para não serem substituídas por penas restritivas de direito, como a lei estabelece em penas que não ultrapassam tal limite. Tal súmula e prova testemunhal do policial deveriam ser valoradas para que os fatos fossem confirmados juridicamente e levassem o julgador à convicção judicial necessária para tirar a liberdade de alguém e mandá-lo para a cadeia. O reexame dos fatos e da prova não são permitidos por súmulas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, mas a valoração jurídica da prova cabe, pois trata-se de discussão de direito. É isto que o STF quer acabar: com a presunção de inocência em condenações de segunda instância sem o trânsito em julgado. Se alguém mentir sobre um fato, por exemplo, esse falso testemunho será o bastante para mandar alguém para a cadeia. Mesmo que a prova seja desconsiderada juridicamente acabando com o fato narrado.

A análise da prova material no crime de tráfico é mais dolorosa ainda. A Lei 11343/2006 estabelece que o magistrado deve, primeiramente, verificar a quantidade e a natureza da droga para enquadrar no consumo ou no tráfico. Mas isso não acontece e qualquer quantidade pode ser estabelecida como tráfico. Esta prova material deveria ser valorada juridicamente para caracterização da materialidade do crime. A primeira questão a ser analisada num julgamento de homicídio consumado, por exemplo, é a existência de um cadáver com características de assassinato. A mesma situação deveria acontecer no crime de tráfico de maconha, a natureza e a quantidade deveriam ser analisadas separadamente das demais provas, como um pontapé inicial para o julgamento de tráfico. Os tribunais não enfrentam a questão da natureza e da quantidade da droga para a caracterização da materialidade do crime. Tal discussão de direito caberia ao STJ e ao STF. A prova material deveria ser valorada juridicamente. Milhares de pessoas estão condenadas por tráfico de menos de 100 gramas de maconha.

Essa decisão do Supremo vai superlotar ainda mais de consumidores e vendedores de mutuca nossas já abarrotadas cadeias brasileiras, que mais se parecem campos de concentração.

Sobre André Barros

ANDRÉ BARROS é advogado da Marcha da Maconha, mestre em Ciências Penais, vice-presidente da Comissão de Direitos Sociais e Interlocução Sociopopular da Ordem dos Advogados do Brasil e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros
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