Por que os ativistas da Marcha da Maconha pediram asilo político ao Uruguai?

Fotografia de uma manifestante de costas para a câmara com uma máscara no formato de folha de maconha na cabeça e ao fundo, desfocado, outra pessoa com uma máscara na parte de trás da cabeça em meio a vários outros manifestantes, durante o desfile do Bloco Planta na Mente no carnaval de 2018.

A proibição da maconha pode ser considerada uma perseguição política do Estado a seus cidadãos, uma vez que impede o acesso legal ao uso medicinal da planta e coloca em risco a vida de milhões de pessoas. Entenda mais sobre o tema na reportagem do HuffPost Brasil.

Portadora de artrite reumatoide e síndrome de Sjogren, doenças autoimunes que atingem as articulações e as glândulas exócrinas, respectivamente, a psicóloga aposentada Marcia Lima Guerra, de 53 anos, desenvolveu no ano passado um quadro de epilepsia.

“Minha medicação para doença autoimune não funcionava mais, os imunossupressores se encontravam refratários à doença e eu já tinha usado todos do mercado. Quando eu vi, estava tendo convulsões todos os dias. Vomitava por 24 horas, não conseguia fazer mais nada”, contou Guerra ao HuffPost Brasil.

Foi quando ela experimentou óleo de maconha, e a vida começou a “entrar nos trilhos”. “Faz um ano e um mês que eu estou tomando o óleo. Hoje eu controlo os sintomas e consigo ficar bem para me divertir, consigo ficar bem para viver.”

“O meu remédio é muito importante. É uma condição de vida para mim.”
— Marcia Guerra, usuária de maconha medicinal.

No último dia 29, Guerra estava com ativistas da Marcha da Maconha de São Paulo quando o grupo protocolou um pedido de asilo político no Consulado do Uruguai, país que regulamentou a venda e o autocultivo da erva. De acordo com Gabriela Moncau, militante da Marcha da Maconha e do coletivo DAR (Desentorpecendo a Razão), o pedido de asilo é, sobretudo, um ato político em defesa da legalização da cannabis medicinal.

Leia mais: Marcha da Maconha de São Paulo pede asilo político ao Uruguai

“Pedimos que o uso terapêutico da maconha seja legalizado no Brasil, mas que também seja permitido o cultivo em casa, sem privilégio à indústria farmacêutica. Isso, para nós, é fundamental”, disse Moncau ao HuffPost.

“Escolhemos o Uruguai porque é um país vizinho que, na nossa opinião, está com uma legislação muito avançada. É uma homenagem ao Uruguai e é, ao mesmo tempo, uma denúncia do Estado brasileiro, que prejudica aqueles que precisam da maconha como remédio. É uma perseguição política que traz um problema humanitário”, completou.

Não há prazo para uma resposta do consulado uruguaio. O asilo, ao contrário do refúgio, é uma ferramenta estritamente política de proteção a indivíduos perseguidos e sua concessão não requer necessariamente um embasamento jurídico.

Fotografia frontal e em plano médio de Marcia Lima Guerra segurando um cartaz de enrolar branco com o texto "A maconha me faz viver!!!" em verde, preenchendo a maior parte do pôster, e o texto "Cultive Saúde" em preto e fonte pequena, na parte inferior direita; ao fundo, na parte superior direita da foto, pode-se ver um relógio antigo de parede.

#PraCegoVer: fotografia frontal e em plano médio de Marcia Lima Guerra segurando um cartaz de enrolar branco com o texto “A maconha me faz viver!!!” em verde, preenchendo a maior parte do pôster, e o texto “Cultive Saúde” em preto e fonte pequena, na parte inferior direita; ao fundo, na parte superior direita da foto, pode-se ver um relógio antigo de parede. Créditos: arquivo pessoal.

CBD (canabidiol) e o THC (tetrahidrocanabinol), presentes na cannabis, são usados no tratamento de câncer, esclerose múltipla, fibromialgia, glaucoma, dor crônica, síndrome de Tourette, mal de Parkinson, Alzheimer. Pacientes brasileiros podem importar produtos à base de maconha com autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e prescrição médica, mas a importação, além de burocrática, é extremamente cara.

“Escolhemos o Uruguai porque é um país vizinho que, na nossa opinião, está com uma legislação muito avançada. É uma homenagem ao Uruguai e é, ao mesmo tempo, uma denúncia do Estado brasileiro,”

— Gabriela Moncau, ativista da Marcha da Maconha.

Se fosse importar tudo o que precisa para seu tratamento, Guerra diz que gastaria no mínimo R$ 4.000 por mês. “É muito caro. Chega um momento em que você percebe que não vai conseguir, que realmente vai ter que produzir, cultivar”, diz.

Autocultivo de maconha

Marcia Guerra integra a Cultive – Associação de Cannabis e Saúde e busca autorização da Justiça para plantar maconha em casa. Esse é o caminho trilhado por pacientes que, sem poder arcar com o alto custo do tratamento, recorrem ao Judiciário para cultivar cannabis e produzir óleo de maconha de forma artesanal — cerca de 25 famílias brasileiras têm a permissão atualmente.

A psicóloga conta que começou a fumar maconha de forma terapêutica para aliviar dores intensas, especialmente a partir do momento em que colocou uma prótese no joelho, até recorrer ao óleo contra epilepsia. “A maconha me salvou. Sempre me fez bem, mas eu não usava diariamente. Quando fechou o diagnóstico da epilepsia, eu soube que já não tinha mais opção. Eu sabia que o melhor tratamento para mim era mesmo com a maconha”, conta.

Sobre o asilo político no Uruguai, ela diz considerar o pedido um “ato simbólico” e afirma que não quer ser obrigada a deixar o Brasil. “O meu remédio é uma coisa muito importante. É uma condição de vida para mim. Eu espero continuar aqui no meu País, lutando por essa causa.”

“Pedimos que o uso terapêutico da maconha seja legalizado no Brasil, mas que também seja permitido o cultivo em casa, sem privilégio à indústria farmacêutica. Isso, para nós, é fundamental.”

— Gabriela Moncau, ativista da Marcha da Maconha

Para Gabriela Moncau, a regulamentação do uso medicinal da erva é a “porta de entrada” para a legalização de todos os usos da cannabis no Brasil.

“Nosso foco (no pedido de asilo, leia a íntegra abaixo) é o uso terapêutico, mas a gente também cita o uso recreativo na tentativa de ampliar o debate. Pensando no longo prazo, talvez esteja aí a porta de entrada para a legalização da maconha, porque o uso medicinal é um tema que, ainda bem, consegue sensibilizar algumas pessoas.”

A Anvisa começou a discutir a regulação do plantio de maconha para pesquisa e produção de medicamentos — e havia prometido uma resposta para 2018 —, mas apenas empresas devem ser beneficiadas. Quanto ao plantio caseiro de cannabis, no final de novembro a Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado aprovou um projeto que permite o cultivo para uso pessoal terapêutico. A proposta, contudo, ainda precisa passar pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) e pelo plenário do Senado para, então, ser apreciada na Câmara dos Deputados.

‘Apologia à cura’

O pedido de asilo ao Uruguai fez parte de uma série de ações realizadas durante a Semana da Maconha Terapêutica – Apologia à Cura, que começou em 27 de novembro, Dia Nacional de Combate ao Câncer. As atividades foram uma homenagem a Maria Antonia Goulart, ativista pela legalização, que morreu em maio deste ano, aos 69 anos. “Essa frase, ‘apologia à cura’, era uma marca dela”, conta Moncau.

A relação de Maria Antonia com a cannabis começou em 2007, quando ela foi diagnosticada com câncer no intestino e usava maconha para aliviar os efeitos colaterais do tratamento. Mais tarde, voltou a consumir para reduzir dores musculares causadas pela fibromialgia. Em 2017, Maria Antonia foi diagnosticada com câncer no cérebro e obteve autorização dos médicos de um hospital para consumir maconha (com um vaporizador) na UTI.

Fotografia em meio primeiro plano de Maria Antonia Goulart sentada em uma cadeira de rodas, usando um lenço de cor azul claro e estampas da folha da maconha em azul escuro na cabeça, óculos escuros e uma camiseta preta com um grande quadrado amarelo que envolve a escrita "Maconha Medicinal" em sua parte inferior e, logo abaixo, a expressão "Apologia à Cura", em letras pequenas, na parte direita do rodapé, além de outro quadrado preto, na posição diagonal, com o texto em amarelo "Eu Uso", e fazendo o gesto de vitória com a mão esquerda.

#PraCegoVer: fotografia em meio primeiro plano de Maria Antonia Goulart sentada em uma cadeira de rodas, usando um lenço de cor azul claro e estampas da folha da maconha em azul escuro na cabeça, óculos escuros e uma camiseta preta com um grande quadrado amarelo que envolve a escrita “Maconha Medicinal” em sua parte inferior e, logo abaixo, a expressão “Apologia à Cura”, em letras pequenas, na parte direita do rodapé, além de outro quadrado preto, na posição diagonal, com o texto em amarelo “Eu Uso”, e fazendo o gesto de vitória com a mão esquerda.

Leia a íntegra do pedido de asilo feito pela Marcha da Maconha ao Uruguai:

Ao Consulado Geral do Uruguai

Ref: Pedido de asilo político

Prezados senhores e senhoras,

Nós, integrantes da Marcha da Maconha São Paulo, um dos principais movimentos sociais do Brasil nos últimos dez anos, respeitosamente nos fazemos aqui presentes para solicitar asilo político em seu país, uma vez que nosso Estado nos persegue politicamente e ameaça nossas vidas ao não permitir o acesso legal e regulamentado ao uso terapêutico da maconha.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, firmada por Brasil e Uruguai, prevê o mecanismo do asilo político para evitar a perseguição política do Estado a seus cidadãos. O Tratado do Mercosul também prevê ações relativas a esse aspecto, assim como a Convenção de Montevidéu, ratificada pelo Brasil em 1937, que estabeleceu as bases para o asilo político, ou diplomático, com base em parâmetros humanitários, e a Convenção sobre Asilo Diplomático, realizada em Caracas.

Mesmo os Estados Unidos da América, país atual e historicamente receoso da entrada de estrangeiros, prevê a concessão de asilo político no caso de sinais de perigo para a vida. É exatamente disso que trata o pedido aqui em questão: de uma perseguição política por parte de nosso próprio Estado, o que acarreta em risco para nossas vidas, e de milhões de outras pessoas em nosso país. É um pedido com bases humanitárias.

Como é do conhecimento dos senhores, uma vez que seu país passou por um processo de debate que levou à legalização de todos os usos e do comércio da maconha, o uso terapêutico da cannabis é reconhecido mundialmente como altamente efetivo no trato de uma série de doenças, muitas delas bastante graves – utilidade essa que só aumenta na medida em que aumentam também as novas pesquisas.

O sucesso milenar do uso social, ou cultural, de maconha, vulgarmente conhecido como “recreativo”, tampouco está dissociado das propriedades terapêuticas da planta, que amenizam sofrimentos e potencializam alternativas espirituais e corporais. Por outro lado, a proibição das drogas é cada vez mais deslegitimada e contestada em escalas locais e globais, sendo inquestionavelmente um instrumento de gerir (e eliminar) os pobres e marginais.

Nosso país, no entanto, vira as costas para os milhões de mortos e encarcerados vitimados por uma guerra seletiva e sem sentido, e fecha os olhos para a dor de outros milhões que poderiam ser beneficiados pelos usos terapêuticos das substâncias demonizadas. Com o novo governo federal a tendência, já explicitada diversas vezes, é que nossas vidas sejam cada vez mais ameaçadas.

Somos ativistas da legalização da maconha, e somos também usuários, pesquisadores, pacientes ou parentes de pacientes que necessitam do uso terapêutico da maconha para tratar suas doenças ou amenizar os sintomas delas. Fazemos essa solicitação em nome do nosso direito mais básico, o de viver em paz, o de ter nossa saúde, e nossa existência, protegidas.

No aguardo de suas providências, e solidariedade, atenciosamente agradecemos.

MARCHA DA MACONHA SÃO PAULO.

#PraCegoVer: fotografia (capa) de uma manifestante de costas para a câmara com uma máscara no formato de folha de maconha na cabeça e ao fundo, desfocado, outra pessoa com uma máscara na parte de trás da cabeça em meio a vários outros manifestantes, durante o desfile do Bloco Planta na Mente no carnaval de 2018. Créditos da foto: Phill Whizzman.

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