MEIA-NOITE E MEIO-DIA NA CIDADE DE DEUS

Meia noite e meio dia na cidade de deus, maconha smoke buddies

A máxima de Buscapé – “… na Cidade de Deus, se correr o bicho pega e se ficar o bicho come” personagem da ficção, mantém-se viva e realista no texto dessa semana do Advogado da Marcha da Maconha, Dr. André Barros, mostrando que nada mudou nos últimos anos, na CDD,  e antigos jargões como ‘Morcegão’ que hoje são conhecidos como ‘Meia-Noite e Meio-Dia’ continuam assombrando a Cidade que era para ser de Deus, mas é da UPP.

Conversando com uma família desesperada por estar com um filho na custódia de hospital público do Rio de Janeiro, porque recebeu um tiro nas costas e pelas costas na cidade de Deus, perguntei sobre o “morcegão”.

Quando me formei, em 1988, já tinha experiência em defesas orais, pois havia estagiado no I Tribunal do Júri durante dois anos. Meu pai, Fernando Barros, foi um dos maiores tribunos a que assisti. E olha que vi advogados excepcionais atuando, como Evaristo de Moraes, Humberto Telles, George Tavares, Técio Lins e Silva, Arthur Lavigne, Murilo e Canaã.

Em 1989, fui contratado por duas mulheres, que trabalhavam na Cobra Computadores, em Jacarepaguá, para defender seu irmão, que já estava preso há cinco anos por duas tentativas de homicídio na Cidade de Deus. Na realidade, a polícia entrou atirando com duas guarnições e atingiu um trocador e um garoto. Queriam que meu cliente segurasse as duas tentativas de homicídio. Diziam que era traficante, mas ele não tinha qualquer condenação por tal crime nem estava sendo acusado por tráfico, e queriam que ele fosse condenado por dois outros crimes que não havia cometido.

Pedi que convocassem as senhoras da Cidade de Deus e assim aconteceu. Depois de duas horas de acusação e defesa, mais meia hora de réplica, na tréplica, terminei dizendo que o julgamento é público, porque a sociedade tem o direito de julgar se a Justiça está ou não fazendo Justiça. Emendei, afirmando que as pessoas que presenciaram aquela violência policial, que já não acreditavam na Justiça, se voltassem à Cidade de Deus, ao saberem que meu cliente tinha sido condenado a trinta anos de prisão, por dois crimes que não havia cometido, se as pessoas da Cidade de Deus iriam acreditar mais ou menos na Justiça? Como são sete jurados, ganhei de 7 X O em cada uma das duas tentativas, Assim, ganhei o Júri por 14 X 0.

Nesse processo fiquei sabendo que o posto da polícia na Cidade de Deus era apelidado de “morcegão”, porque os policiais colocavam moradores de cabeça para baixo, sob o argumento de que eram criminosos. Contando essa história para eles, meus novos clientes me disseram que isso não existia mais, mas que agora eram meia-noite e meio-dia.

Então perguntei a razão. A família explicou que os plantões da UPP que fazem as rondas na Cidade de Deus costumam ser tranquilos, exceto por dois que circulam sem identificação, o verdadeiro pavor do local. Como um é negro e o outro é branco e tocam o terror sem identificação, a comunidade apelidou o negro de “meia-noite” e o branco de “meio-dia”.

Portanto, pelo visto, depois de tantos anos, nada mudou na Cidade de Deus!!!

Sobre André Barros

ANDRÉ BARROS é advogado da Marcha da Maconha, mestre em Ciências Penais, vice-presidente da Comissão de Direitos Sociais e Interlocução Sociopopular da Ordem dos Advogados do Brasil e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros
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