“A guerra às drogas afeta diretamente a vida de mulheres negras”

Fotografia em plano fechado das mãos de uma pessoa negra, atrás das grades, algemadas. Tráfico.

No Brasil, a mercenária guerra às drogas, além de superlotar os presídios, reflete o racismo e o machismo praticados pela elite branca dominante. Após a aprovação da atual lei de drogas, houve uma explosão de prisões pelo crime de tráfico de drogas, em sua grande maioria de mulheres negras. Saiba mais sobre o tema na entrevista da pesquisadora Juliana Borges para a CartaCapital.

Não é possível falar sobre o sistema carcerário brasileiro sem discutir racismo e feminismo negro, explica a pesquisadora Juliana Borges, autora de “O que é Encarceramento em Massa?“, lançado no começo de março. “Houve um aumento exponencial da prisão de mulheres, e de mulheres negras, depois da promulgação da lei de drogas”, explica.

Entre 2006 e 2014, a população feminina nos presídios aumentou em 567,4% incluindo o Brasil no ranking dos países que mais encarceram no mundo, ficando no 5º lugar. 67% destas mulheres são negras.

“Minha militância sempre passou pelo debate da violência policial”, afirma a pesquisadora, nascida numa família de mulheres fortes do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, região com altos índices de mortes de jovens. Juliana teve dois amigos de infância assassinados, presenciou abordagens policiais violentas e ela mesma foi vítima de uma, aos 14 anos. “Fui revistada por um policial masculino que não se importou com o fato de eu ser uma jovem.”

Durante a graduação, participou de encontros de juventude negra e então iniciou a militância feminista .”Meu foco sempre foi mais a discussão da segurança pública e do encarceramento e comecei a ver que não tinha como discutir isso sem falar de política de drogas no nosso país”, explica a autora.

O livro é o segundo da coleção “Feminismos Plurais”, organizada por Djamila Ribeiro e publicado pelo Grupo Editorial Letramento.

Confira abaixo a entrevista que Juliana Borges concedeu a CartaCapital.

CartaCapital: Na sua pesquisa você faz uma relação entre encarceramento e racismo. Como essas questões se relacionam?

Juliana Borges: Historicamente, ao se pensar como o sistema de justiça se organiza, vemos que sempre houve seletividade penal racial. No País, historicamente, quando as leis criminais são aprovadas, sempre há uma diferenciação no tratamento para o encarceramento, para a punição de pessoas negras, sejam elas libertas ou escravizadas. As políticas e o estabelecimento do que deve ser criminalizado ou não acaba tendo um recorte racial.

Por exemplo, a lei da vadiagem determinava que pessoas que estavam na rua sem fazer nada eram potenciais criminosas, que elas precisavam ser encarceradas, punidas, presas. Quem são essas pessoas, no pós abolição, sem emprego, num País que começa a importar mão de obra de fora ao invés de utilizar esses trabalhadores recém libertos? Eram os homens negros. Há um processo de encarceramento de negros já nesse período no Brasil, passando também pela criminalização da capoeira, dos terreiros.

Gosto muito das perguntas que a  Angela Davis faz, que nos colocam a pensar: “O que é crime?” “Quem é o criminoso?” “Quem define o que é crime ou criminosos?”.

Se pensarmos a branquitude como uma parcela que detém, não simplesmente etnicamente, mas o poder, podemos falar que são os 1% mais brancos e ricos e que detém os meios de produção e sempre estão presentes na atuação hegemônica nas instituições brasileiras.  São eles que determinam o que é crime e quem é o criminoso. E de acordo com esse perfil que se estabelece, os criminosos são sempre jovens, homens, negros, potenciais criminosos.

No livro, eu tento mostrar que isso está presente em toda história do Brasil, até chegarmos na contemporaneidade, com a nova lei de drogas, aprovada em 2006.

Por um lado, é uma lei que tem um avanço significativo, porque descriminaliza o usuário, mas por outro lado transforma tráfico em crime hediondo. E quando fica nas mãos do policial a definição de quem é o usuário e quem é o traficante, tais instituições têm demarcado como criminoso o jovem, homem negro, que vai ser visto como traficante e não usuário. Então, de fato, até temos uma redução do encarceramento, mas de quem? De pessoas brancas. E um forte encarceramento da população negra.

CC: Como as mulheres foram afetadas pela promulgação da lei de drogas?

JB: Houve um aumento exponencial da prisão de mulheres, e de mulheres negras. 68% da população prisional feminina é composta de mulheres negras. De 2006 a 2014, houve um aumento de 567% no contingente de mulheres encarceradas. O de  homens aumentou em 220%. E 62% das mulheres estão presas por tráfico de drogas, ao passo que os homens são cerca de 27%. Essa política que declara guerra às drogas tem impactos diretos em mulheres negras. Costuma se dizer que o Brasil é multicultural, mas quando olhamos a população encarcerada, a população com maiores vulnerabilidades, ela é muito pouco multicultural e multiétnica.

 CC: Em relação à população carcerária masculina o que mudou pós lei de drogas?

JB: Houve um aprofundamento do aprisionamento masculino. E um aumento da construção de presídios no Brasil. Quatro em cada dez presídios foram construídos após a aprovação da lei de drogas de 2006. E hoje os presídios estão em situações paupérrimas. 40% da população prisional são presos provisórios e a taxa de superencarceramento é em torno de 38%.

Se conseguíssemos garantir minimamente uma menor taxa de aprisionamento provisório conseguiríamos resolver a questão da superlotação porque temos um sistema de justiça criminal que vê na prisão a única saída para resolução de conflitos. Junto a isso há um fortalecimento das facções do crime organizado.  Superlotar presídios significa fortalecer facções. Temos um estado que alimenta o que eles dizem combater.

Eles dizem combater as facções, mas quando prendem as pessoas que são réus primários, presas por crimes leves, e elas entram num ambiente que é totalmente agressivo, pela lei da sobrevivência, pelas condições em que se se estabelecem as relações nos presídios, são estabelecidas relações de resistência e sobrevivência. Prende-se pessoas que poderiam responder em liberdade, que poderiam continuar construindo nas suas comunidades e assim passam a se relacionar com as facções, então é um círculo vicioso.

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CC: Poderia falar um pouco sobre a relação entre aumento do encarceramento feminino e a entrada das mulheres nas facções criminosas?

 JB: Elas nunca estão em situações de mando nas facções, é uma dinâmica que se estabelece por conta de uma necessidade de sobrevivência. No caso dos homens encarcerados, mantém-se uma certa rede de apoio, as mulheres continuam indo aos presídios, levando alimentação.

No caso das mulheres não, elas são chefes de família, elas que garantem o sustento. Então quem vai garantir a sobrevivência delas nos presídios, muitas vezes são as facções, nas quais essas mulheres não assumem papeis de comando.

Estão trabalhando sempre na ponta do varejo, como pequenas comerciantes. E muitas vezes as condições de trabalho que o tráfico oferece são melhores do que as convencionais, pois ela pode estar ali perto dos filhos, em casa. Temos que desromantizar essa ideia de mulher que é presa porque está apaixonada pelo companheiro, muitas delas acabam entrando para esse mercado das drogas porque precisam garantir o sustento das famílias.

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CC: Qual é o impacto do aumento do aprisionamento feminino na estrutura familiar das mulheres?

JB: Desastroso. Há um caso de uma mulher que foi presa no Rio de Janeiro transportando 20 quilos de cocaína. Estava grávida de cinco meses e já tinha uma filha de 4, 5 anos. Foi presa no Rio de Janeiro e era de São Paulo. O drama já começa aí. Ela relatou que tinha feito o transporte porque precisava comprar o enxoval do bebê.

A primeira questão era como garantir quem ia ficar com a filha e como a menina ia visitar a mãe no presídio. Nesses casos, quando não é encontrado nenhum parente que possa ficar com as crianças, elas são levadas para adoção, casas de acolhimento.

Há uma desestruturação total das relações familiares. O principal impacto é a perda de direitos da manutenção da vida daquelas pessoas, por isso que o habeas corpus coletivo, que foi aceito pelo STF foi tão importante. Para garantir o que já estava em lei, que mulheres em situação de prisão provisória grávidas ou com filhos até 12 anos, ou filhos deficientes possam cumprir pena em prisão domiciliar.

 CC: Qual é o perfil do delito cometido por essas mulheres?

JB: Em 2014, uma pesquisa do Rio de Janeiro fez um levantamento sobre o perfil das apreensões e foi demonstrado que a média era de 20 gramas de droga por cada apreensão, ou seja, uma quantidade muito pequena. Além disso, a maioria não foi presa em situação violenta, não estavam praticando o tráfico de forma violenta, não tentaram impedir a prisão.

Quando vemos os processos das mulheres vemos que não tem motivo para estarem presas. Elas não são grandes comandantes da cadeia do tráfico, mas mesmo assim tão presas, porque temos sistema de justiça criminal que é absolutamente punitivo.

As detenções femininas ainda são acompanhadas de uma carga moralista. Elas ouvem dos juízes:”Mas você estava traficando e é mãe? Que exemplo que você quer dar para seu filho?”. Mas quais são as condições que sociedade oferece para essa mulher dar bom exemplo para seus filhos? E também podemos discutir o que é bom exemplo.

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CC: Qual sua opinião sobre as audiências de custódia, elas estão melhorando o quadro do aprisionamento no Brasil?

JB: As audiências de custódia são um dispositivo importante, ferramentas importantes, mas já tem grupos de estudiosos analisando seus resultados. Observa-se que continua sendo muito difícil, mesmo nas audiências, que um juiz garanta que a pessoa responda em liberdade. A prisão ainda tem sido a primeira saída que juízes vêm para a resolução de conflitos.

Nessas audiências também há indícios de seletividade racial, porque quando o réu é negro é mais difícil que ele consiga responder em liberdade. A subjetividade racial ainda tem peso muito grande nas decisões.

CC: Quais são os maiores desafios hoje, o que deve ser feito para mudar esse cenário?

JB: Desencarceramento, legalização das drogas e desmilitarização. Desencarcerar significa pensar e repensar os presos provisórios num primeiro momento. Significa colocar em prática o habeas corpus que foi concedido no caso das mulheres, que já tem demonstrado dificuldades para sua execução, pois vários juízes têm se mostrado resistentes para garantir a liberdade das mulheres mesmo com a decisão do STF.

Para legalizar as drogas não basta descriminalizar o usuário. Quando falamos em guerra às drogas, não estamos falando meramente na liberdade individual de ser usuário de drogas, a gente está falando que essa narrativa tem servido para encarcerar uma parcela da população, com uma política de segregação e discriminação racial.

E a desmilitarização é necessária pois temos uma polícia que continua agindo de forma totalmente hierarquizada, com visão de que ela precisa eleger um inimigo para atuar no território. E o inimigo interno a ser combatido é a população negra.

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#PraCegoVer: Fotografia das mãos de uma pessoa negra algemadas entre grades.

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