Grupo RBS questiona especialistas sobre a legalização da maconha

Como parte do seu editorial favorável a legalização da maconha o Grupo RBS questionou médicos, juristas, policiais e religiosos sobre a regulação no Brasil.

Policiais no front do combate às drogas discordam sobre o modelo mais apropriado ao Brasil. Para um grupo, a legalização da maconha não reduziria o tráfico e, pior, aumentaria a violência. Para outra parcela, somente a regulamentação da marijuana acabará com as mortes no submundo dos tóxicos.

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Um dos contrários é o delegado de Polícia Civil Heliomar Franco. Com a experiência de quem comandou o Departamento Estadual do Narcotráfico (Denarc), afirma que a legalização facilitará o acesso à maconha, aumentando o consumo entre jovens.

– Ledo engano achar que reduzirá a criminalidade – alerta o delegado, que organizou a operação Anjos da Lei para capturar traficantes que rondavam escolas.

Franco também se preocupa com os reflexos no narcotráfico. Acha que, no mercado legal, a erva poderá custar mais, em função dos impostos, das licenças e da pureza do produto. Isso abriria espaço para um comércio paralelo, com a oferta de produtos mais baratos, mas de qualidade duvidosa. Também há o risco de os traficantes se reorganizarem, partindo para entorpecentes ainda mais pesados para compensar a perda do negócio com a cânabis.

Já o delegado Orlando Zaccone D’Elia Filho, do Rio, está convicto de que somente a regulação, num regime em que o Estado controlaria o plantio, a produção e a venda, poderia diminuir a criminalidade. Secretário da organização Leap (Law Enforcement Against Prohibition) no Brasil, o delegado fluminense observa que a violência não resulta do uso da maconha, mas da proibição que alimenta o narcotráfico.

“As pessoas morrem mais em decorrência da guerra pelas drogas, do que pelo consumo delas – argumenta Zaccone.”

 

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De tanto frequentar as sucursais do inferno em que se converteram os presídios, a Pastoral Carcerária Nacional firmou posição: é contra a criminalização da maconha. A entidade está convicta de que a repressão move as engrenagens do encarceramento massivo, que aumentou 450% nos últimos 20 anos. O Brasil já tem 715 mil pessoas atrás das grades – a terceira maior população no mundo, depois dos EUA e da China.

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Coordenador da pastoral, o padre catarinense Valdir João Silveira inclina-se pela ideia de que a descriminalização poderia aliviar a violência e diminuir o ritmo do aprisionamento. Atualmente, um em cada quatro detentos está trancafiado por comércio ilegal de drogas. A maioria (52%) é de jovens entre 18 e 29 anos, vindos das periferias.

– Este assunto (drogas ilícitas) nos é muito caro – afirma o sacerdote.

O advogado Paulo Malvezzi diz que a pastoral ainda não definiu qual seria o melhor modelo de regulação das drogas. Mas já concluiu que o regime de reprimir e punir faliu. Justamente nos presídios, onde deveriam ser recuperados, os condenados têm fartura de tóxicos.

A partir dos relatórios de 6 mil agentes (religiosos e leigos), a pastoral está alarmada com a situação de mulheres presas por tráfico. O contingente cresceu 260% em 10 anos, ante 105% dos homens. Em Estados fronteiriços, elas já representam 80% nas cadeias.

O enclausuramento de mulheres é mais traumático. Laços familiares se rompem, porque elas são apartadas dos filhos. Malvezzi cita outro agravante:

– O sistema prisional não foi pensado para a mulher. Em São Paulo, houve gestantes parindo algemadas.

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Uma parcela significativa de magistrados brasileiros acredita que chegou o momento de o Brasil descriminalizar a maconha, a droga ilícita mais consumida no país. O grupo propõe equipará-la ao álcool e ao tabaco. Juiz de Direito em São Paulo, conselheiro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e suplente da diretoria do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Roberto Luiz Corcioli Filho questiona: por que proibir a erva, estigmatizando o usuário, se a cerveja e a cachaça estão liberadas?

– (O melhor modelo) é descriminalizar e regulamentar o consumo – diz Corcioli, para quem o país “já estaria preparado” para legalizar a cânabis desde a Constituição de 1988, que prevê respeito à vida privada.
Portas estão abertas para essa discussão na mais alta corte. Há pouco mais de um ano, em julgamento de recurso de dois condenados por tráfico, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso defendeu um debate público sobre a descriminalização.

– O foco do meu argumento não é o usuário. A preocupação é dupla.

Primeiro, é reduzir o poder que a criminalização dá ao tráfico. A criminalização fomenta o submundo do poder político e econômico dos barões do tráfico, que oprimem comunidades porque oferecem remunerações maiores que o Estado e o setor privado. Meu segundo questionamento é sobre a conveniência de uma política pública que manda para a prisão jovens de bons antecedentes, que saem de lá graduados na criminalidade – disse Barroso.
O gaúcho Luiz Matias Flach, há cinco décadas lidando com as consequências das drogas, seja como delegado de Polícia Civil ou como juiz de Direito que foi, ex-presidente do Conselho Federal de Entorpecentes, é cauteloso. Não se “atreveria” a propor a legalização, mas entende que o Brasil deve observar a experiência de outros países, além de estimular o debate interno.

Presidente do Instituto Crack Nem Pensar, Flach lembra que, para a Organização das Nações Unidas (ONU), a maconha segue proibida:

– Não vão conseguir mantê-la proscrita para sempre, mas querem segurar isso o quanto for possível.
Também se manifestando em nome da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Flach acha que o consumo individual não deveria ser punido. Mas alerta:

– Quando o assunto é drogas, um passo demasiado longo pode significar um retrocesso.

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Antes de debater qual o melhor caminho para a maconha, se continuar proibindo ou legalizar o uso, a psiquiatra Ana Cecilia Marques gostaria que fossem avaliados os efeitos das chamadas drogas legais na saúde dos brasileiros. Alerta que o álcool e o fumo já causam estragos além do tolerável para se pensar na regularização de mais um entorpecente.

Presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), Ana Cecilia diz que a maconha “é a bola da vez” entre os difusores da legalização. No entanto, pondera que o país ainda não aprendeu a lidar com a bebida alcoólica e os cigarros, responsáveis por doenças, acidentes e mortes. E questiona:

– Será que é o momento de se legalizar mais uma droga? Não seria melhor controlar e aprender com as drogas lícitas?

A médica psiquiatra compara que a maconha é como um leão solto, o qual não se tem noção do tamanho, da ferocidade e das reações. Afirma que é “ingenuidade” olhar a marijuana sob o prisma dos anos 1960, quando estava associada à contracultura e aos protestos contra governos autoritários na América do Sul.

Não se trata de um psicotrópico inofensivo, assegura ela.

– A neurociência atesta que não é uma droga leve. Estamos falando de um psicotrópico que muda não só o indivíduo, também o entorno e o meio – diz Ana Cecilia.

Posição semelhante é a de Analice Gigliotti, integrante da comissão de dependência química da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Ela teme que a liberação aumente o consumo, num país sem estrutura para tratar os dependentes nem deter os prejuízos no aprendizado escolar e no trabalho.

– Nossa preocupação é mais ampla, porque não fizemos o nosso dever de casa. Não temos fiscalização sobre a venda de tabaco e dos derivados etílicos. Não vamos ter como assistir quem irá consumir a maconha – diz Analice.

Outra entidade que congrega psiquiatras, a Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas (Abrad) também não acha recomendável liberar o uso. O presidente dela, Jorge Jaber, adverte que haveria uma corrida de jovens pela erva – não somente os mais esclarecidos, mas sobretudo os pobres e sem perspectivas.

– Contra a maconha, pesa a determinação maldita de que é um veneno – recorda Jaber, que atua há mais de 20 anos no atendimento gratuito a dependentes e suas famílias, no Rio.

Também diretor da Associação Americana de Psiquiatras Administradores (AAPA), Jaber ressalva que poderia ser feita apenas uma concessão, destinada ao emprego medicinal da maconha. Refere-se ao canabidiol, já utilizado para tratar pacientes que sofrem de convulsões resultantes de doenças graves. No entanto, seria em caráter experimental, por dois ou três anos, até aparecerem pesquisas científicas que comprovem a eficiência.

Entre as vozes discordantes no meio médico brasileiro está a de Drauzio Varella, talvez o profissional de saúde mais conhecido do país. Em textos sobre o assunto, ele reconhece que a maconha traz malefícios consideráveis e causa dependência, mas propõe a legalização em razão do fracasso da política de guerra às drogas: “Manter a ilusão de que a questão da maconha será resolvida pela repressão policial é fechar os olhos à realidade, é adotar a estratégia dos avestruzes. É insensato insistirmos ad eternum num erro que traz consequências tão devastadoras, só por medo de cometer outros”, escreveu Drauzio.

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Simpatizantes da maconha vão além da descriminalização.O presidente do Instituto Cannabis (ICa), Lucas Oliveira, quer a legalização, numa estrutura em que o Estado regulamentaria desde o plantio até o comércio. Sugere que o próprio governo poderia controlar a produção de tecidos (a partir das fibras da marijuana), de fármacos para tratamento de doenças raras e de cigarros para consumo. Em troca, cobraria taxas e impostos, revertendo o que arrecadasse para a saúde pública.

O ICa nasceu em 2007, criado por alunos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) inconformados contra o que denominam de “perseguição, extorsão e preconceitos” aos usuários. Promove cursos e debates sobre as diversas utilizações da cânabis, da industrial à medicinal. Para Lucas Oliveira, o país começa a perceber a necessidade de reavaliar tabus:

– Há um caminho longo a percorrer, mas acredito que não seja difícil de se conseguir a legalização.

Os exemplos do Uruguai, de Estados norte-americanos e de cidades europeias incentivam o ICa, que vem se articulando com grupos similares pelo mesmo objetivo – o de liberar o uso recreativo da cânabis. Desde 2008, os adeptos realizam passeatas nas ruas. Só o ICa organizou seis marchas da maconha em Santa Catarina.

De acordo com o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), realizado em 2012 pelo grupo do psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cerca de 7% dos brasileiros entre 18 e 59 anos já fumaram maconha.

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