‘Fui na boca de fumo’: a luta de mães de autistas para que os filhos recebam maconha medicinal

Fotografia em meio primeiro plano de Flávia Taboada usando óculos escuros e abraçando seu filho que está à sua frente; o garoto, sorridente, usa uma camiseta cavada vermelha onde pode-se ler escrito em branco "Quebrando as regras"; ao fundo, vemos um linda gramado com algumas flores e plantas.

O uso terapêutico da cannabis é a única forma de alívio para milhares de pacientes brasileiros, dos quais uma parcela expressiva é de portadores de autismo. Mães e familiares enfrentam uma verdadeira batalha para conseguirem o medicamento. Saiba mais sobre o tema na reportagem de Gabriela Bandeira para o Portal Singularidades.

“Fui na boca de fumo, comprei a maconha e fiz uma manteiga. Comecei a dar para ele por conta própria. Ele tinha seis anos”, conta Flávia Taboada, que há cinco anos trava uma luta para tratar o filho com maconha medicinal no Brasil.

E ela não está sozinha. Nos últimos anos, centenas de familiares têm descoberto a utilidade da planta para o tratamento de pessoas com autismo. De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 4801 pessoas foram autorizadas a importar canabidiol (CBD) para cerca de 70 doenças diferentes desde 2015. O maior número de autorizações é para epilepsia e o segundo para pacientes autistas, que já representam 10% do uso legal de CBD no país.

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Em 2018, o número de autorizações para tratar autismo aumentou 225% – é a patologia com maior aumento no número de autorizações de importação no período. O total de pessoas autorizadas a importar canabidiol para autismo aumentou de 159 em 2017, para 517. Estudos já realizados confirmam algumas melhoras no desenvolvimento cognitivo , mas infelizmente, a importação ainda é difícil para muitas famílias. O alto custo e a burocracia fazem com que muitos desistam do tratamento ou optem por métodos não convencionais e ilegais.

A escolha de Flávia, por exemplo, é reflexo da dificuldade para conseguir médicos que prescrevam o óleo no país. Para mostrar a dificuldade de famílias de classe mais baixa que buscam pelo tratamento, ela me pede que use seu nome real nesta reportagem. “As pessoas precisam ver pelo que passamos”, declara.

Tratamento ilegal

Apesar de saber que a situação não era ideal, Flávia persistiu com o tratamento independente por três meses. Nesse tempo, comprava a droga e produzia em casa a manteiga que dava para o filho duas vezes ao dia.

O primeiro contato dela com o uso terapêutico da maconha medicinal foi num documentário que assistiu no YouTube em 2013 e mostra avanços no tratamento de autistas severos. Depois de assistir ao filme, ela buscou médicos que pudessem prescrever o óleo para tratamento, mas só obteve respostas negativas.

Após medicar o filho por conta própria, conheceu outra mãe, que a ajudou a conseguir o óleo por meio de uma rede que fabrica o produto clandestinamente no Brasil. Um frasco de 60 ml custa R$ 470 e dura, em média, dois meses e meio.

Existe uma rede secreta no Brasil todo, onde nós, mães, contamos com esses ‘anjos’ que se arriscam todos os dias para produzir um óleo artesanal para nossos filhos”, relata.

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Ela explica que o produto fabricado precisa seguir uma série de procedimentos para que o produto seja eficaz e não cause problemas aos pacientes, uma vez que os óleos produzidos podem ser concentrados em canabidiol (CBD) e/ou tetrahidrocanabinol (THC). Diferentes proporções destas substâncias podem resultar em um produto final totalmente diferente.

Opinião de especialista

Ainda assim, o neurocientista Renato Malcher, especialista no tema e autor do livro ‘Maconha, cérebro e saúde’,  avalia que as condições continuam não sendo totalmente ideais. “Provavelmente, existem linhagens de Cannabis no Brasil com variações muito grandes de proporção de CBD e THC. Mesmo quando se usa, por exemplo, uma variedade que tem muito CBD, você não pode ter certeza de quanto THC tem ali”, diz.

Segundo ele, essa situação pode trazer riscos aos pacientes autistas. “Em geral, esse efeito pode ser sempre positivo, se a quantidade de THC não for muito alta. Se tiver muito THC e pouco CBD, o paciente pode sofrer ansiedade e ter algum tipo de ataque psicótico. Claro que muitos pacientes usam óleo artesanal e nunca têm problema. Mas é um risco que existe”, pontua.

Mudanças notadas

Graça Maduro iniciou o tratamento com óleo de Canabidiol na filha Caroline mesmo sem autorização da Anvisa para importação. No início, ela adquiria o óleo por meio da mesma associação que Flávia.

“O psiquiatra dela é muito aberto a toda e qualquer alternativa que surge para melhorar a qualidade de vida dela e acompanha tudo”, relata.

Fotografia em primeiro plano e ambiente aberto de Caroline sorrindo e segurando uma boneca junto a sua mãe, Graça Maduro, também sorridentes; ao fundo pode-se ver um muro branco manchado de preto. Créditos: arquivo pessoal.

#PraCegoVer: fotografia em primeiro plano e ambiente aberto de Caroline sorrindo e segurando uma boneca junto a sua mãe, Graça Maduro, também sorridentes; ao fundo pode-se ver um muro branco manchado de preto. Créditos: arquivo pessoal.

Para ela, melhorias já podem ser notadas no comportamento da menina desde o início do tratamento com o óleo de CBD da associação, que apelidou de ‘gotinha mágica’. Além disso, afirma que, com o medicamento, a filha se torna mais falante, centrada e tranquila.

Neste vídeo caseiro, a mãe comemora algumas mudanças de comportamento já notadas.

De acordo com Graça, Carola já teve reações negativas a óleos com extrato de THC. “Preciso sempre me certificar de que os óleos que vem têm menos THC e mais CBD. Só por isso, o número de fornecedores já diminui”, diz ela, que conta que o teste para saber a proporção de THC era feito pelo psiquiatra. O valor pago por cada frasco é de R$ 400, e a duração é de 45 dias.

Ela conseguiu autorização da Anvisa em setembro de 2018, mas disse à reportagem que não havia feito a importação, porque ainda tem o óleo enviado pela associação.

Diferença entre CBD e THC

Fotografia de um frasco de cor âmbar com conta-gotas verde e as pontas dos dedos da mão que o segura, no primeiro plano, e várias plantas de maconha ao fundo desfocado.

#PraCegoVer: fotografia de um frasco de cor âmbar com conta-gotas verde e as pontas dos dedos da mão que o segura, no primeiro plano, e várias plantas de maconha ao fundo desfocado.

Dependendo da variedade da planta que se utiliza para fazê-los, óleos de maconha medicinal vendidos no Brasil e fora dele podem ser concentrados com duas substâncias: canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC).

De acordo com Malcher, o produto importado de outros países é concentrado em CBD, com pouca quantidade de THC. Já aqueles vendidos clandestinamente no Brasil podem receber altas doses de THC.

“Chamamos de ‘óleo’ os extratos produzidos a partir de variações diferentes de plantas de Cannabis. Esses extratos contém vários componentes diferentes da planta, que são os componentes bioativos. Assim, os canabinoides são solúveis em óleos. Esses extratos, normalmente, são vendidos em alguma preparação, ou concentrado ou diluído em azeite, óleo de coco ou algum outro tipo de óleo.

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Dependendo da planta da qual é feita o extrato, a proporção de Canabidiol para THC varia. Extratos que são usados no Brasil atualmente para o tratamento de epilepsia contêm uma quantidade limitada de THC. Isso não é por causa da qualidade médica em si. Os extratos que são vendidos importados para uso compassivo, obedecem uma lei dos EUA que permite exportar, no máximo, 0,3% de THC.

Por isso, se consolidou o uso de extratos ricos em Canabidiol, com muito pouco THC para epilepsia”, explica.

Além disso, diz que a substância usada para fabricação desses óleos interfere na recepção do paciente. “Alguns pacientes respondem melhor a extratos assim do que aqueles que possuam um pouco mais de THC. Enquanto outros respondem melhor com extratos que possuem mais THC”, completa.

Estudos sobre a maconha medicinal

De acordo com Malcher, o óleo ideal usado em pacientes autistas é uma mistura de proporções de CBD com THC. Ele ressalta uma medida que tem sido usada para o tratamento em Israel.

“Temos uma pesquisa observacional, feita com o óleo em proporção de um para 75, ou seja, 1 THC para cada 75 CBD para autismo e os resultados são bons. Eu acredito que a proporção de um para 20 têm resultado melhor, conforme minha impressão durante uma visita que fiz ao Centro de Pesquisa de Israel, que usa essa proporção. Lá, me contaram que para os sintomas do autismo o canabidiol puro não funciona. O que funciona é essa mistura de CBD com THC”, explica.

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Fotografia em primeiro plano de Renato Malcher sentado a uma mesa e olhando para o lado, enquanto fala ao microfone.

#PraCegoVer: fotografia em primeiro plano de Renato Malcher sentado a uma mesa e olhando para o lado, enquanto fala ao microfone.

Ele também atua na Ama-me (Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal), instituição criada para auxiliar pais de possíveis pacientes a conseguir autorização da Anvisa para importação do óleo de canabidiol em tratamentos, como consultor na coordenação médico-científica.

“Como pai de autista, me associei a essa instituição e ela me ajudou no procedimento de obter autorização da Anvisa para importar óleo pra tratar o meu filho. Me mantenho próximo servindo como consultor quando precisam de informação”, conta.

Uma mãe na luta para a descriminalização da maconha medicinal

Vera Duma é mãe do David, de 18 anos. É, também, uma das mulheres que está à frente da luta para descriminalização do uso da maconha medicinal em autistas no Brasil.

Maconha medicinal: mãe sorri e filho olha para algo que a câmera não captou.

“É uma luta que abraço em função do autismo, do meu filho, e de todas as outras crianças, jovens e adultos com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Enfim, todos que vejo que têm um resultado muito bom com isso”, afirma.

Ao lado de outras mulheres, participou de uma audiência no Congresso Nacional, realizada em 2017. Na época, confessa que tinha estudado pouco sobre o tema, mas foi para defender os direitos dos autistas e de famílias que podem fazer o tratamento.

“Ninguém iria representar a causa autista. Então, fui para falar sobre a questão do autista severo. Eles também são possíveis pacientes para utilização dessa medicação”, afirma.

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#PraCegoVer: fotografia (capa) em meio primeiro plano de Flávia Taboada usando óculos escuros e abraçando seu filho que está à sua frente; o garoto, sorridente, usa uma camiseta cavada vermelha onde pode-se ler escrito em branco “Quebrando as regras”; ao fundo, vemos um linda gramado com algumas flores e plantas. Créditos da foto: arquivo pessoal.

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