Escritora percorre meca da maconha na Califórnia para compor romance

Antes da Califórnia legalizar o uso recreativo da maconha, a escritora gaúcha Carol Bensimon investigou um tradicional polo de produção da erva para escrever “O clube dos jardineiros de fumaça”. A trama acontece em torno das experiências de um professor de uma universidade em Porto Alegre que foi demitido após cultivar maconha para ajudar no tratamento da mãe que sofre de câncer. Após a morte da mãe, ele se muda para a Califórnia para fazer um doutorado e acaba entrando no mercado da cannabis ilegal. As informações são d’O Globo.

Há cinco dias, uma nova brisa sopra na Califórnia. A legalização da maconha para fins recreativos no mais rico Estado americano abriu caminho para a criação de um mercado bilionário (fala-se num potencial de até US$ 7 bilhões anuais).

Mas, quando a escritora gaúcha Carol Bensimon esteve no condado de Mendocino, tradicional polo de produção de maconha no Norte do Estado, em idas e vindas entre 2012 e 2017, o cenário era outro. Por lei, o consumo da erva era permitido, desde 1996, apenas para fins medicinais. Na prática, porém, os produtores de Mendocino agiam à margem da lei, sustentando silenciosamente o modo de vida local.

Ao pisar no lugar pela primeira vez, como turista, a autora descobriu ali a inspiração para seu terceiro romance. Passou, então, a ir e voltar atrás das histórias que levaram a “O clube dos jardineiros de fumaça”, lançado agora pela Companhia das Letras.

No período de transição rumo à legalidade, que jogou consumidores e produtores numa espécie de zona nebulosa, Carol fez uma imersão em Mendocino e no universo muito peculiar daqueles que tiravam seu sustento da plantação e do comércio ilegais de cannabis.

Visitou cultivos de até 500 plantas, conheceu uma grande feira de maconha orgânica e conviveu com pessoas de diversas gerações, de hippies veteranos e desiludidos a jovens tentando viver fora dos moldes. Saíram daí os exemplos que dera, forma aos personagens fictícios do livro.

— Aprendi muito com aquela gente. Historicamente, as pessoas que povoaram essa região nos últimos 50, 60 anos, são de alguma forma outsiders — diz Carol, também autora dos romances “Sinuca embaixo d’água” (2009) e “Todos nós adorávamos caubóis” (2013). — Conheci muitas pessoas que largaram carreiras promissoras para ir plantar maconha. Então, Mendocino é um lugar rural, com uma dinâmica de lugar pequeno, mas com uma mentalidade nada conservadora, muito pelo contrário. O que mais me impressionou foi o tamanho das plantas cultivadas ao ar livre, que passam dos dois metros de altura. As duas plantações que visitei funcionavam tranquilamente, apesar de operarem à margem da lei; uma pertencia a uma senhorinha, e a outra a um cara que parecia a versão obesa do (escritor) David Foster Wallace.

DRAMÁTICO, AMBÍGUO, CONSPIRATÓRIO

A trama do livro gira em torno das experiências de Arthur, professor de uma universidade em Porto Alegre, demitido após cultivar maconha para ajudar no tratamento da mãe. Depois que ela morre, vítima de câncer, ele se muda para a Califórnia para fazer um doutorado — na verdade, um pretexto para entrar no mercado da cannabis ilegal. Lá, envolve-se com uma garçonete adepta do poliamor e filha de um hippie das antigas.

Muitas drogas possuem um ou mais livros marcantes para chamar de seu (a heroína tem “Junky”, de William Burroughs; o ácido tem “O teste do ácido do refresco elétrico”, de Tom Wolfe), enquanto a maconha ainda vive certa orfandade literária. Um lapso que pesou na escolha do tema, reconhece a autora.

— Não há mesmo romances célebres que foquem na maconha. Ela às vezes aparece como coadjuvante de narrativas cujo protagonista é outra substância ilícita — diz Carol. — No cinema, ela está associada às comédias escrachadas. É como se não pudesse ser tema de uma narrativa dramática. Para mim, isso não faz sentido. Há muito drama envolvendo a maconha. A história da proibição é cheia de detalhes dramáticos, ambíguos, e até conspiratórios.

Seu objetivo, no entanto, não era escrever um livro sobre a maconha, e sim sobre o universo específico da planta no Norte da Califórnia.

— Queria trabalhar com esse universo complexo, cheio de sutilezas, em que a contravenção normalmente não descamba em violência; as coisas correm por baixo do pano. É a história de uma planta que também está misturada com a história da contracultura dos anos 1960 e 70. Me interessava muito falar sobre isso e sobre como tudo está diferente hoje. A última visita que fiz foi durante uma grande feira de maconha orgânica, chamada Emerald Cup. Lá vi o outro lado: pequenos produtores criando logomarcas e “diferenciais”: baseados pré-enrolados, bolos de maconha e todo o tipo de alimento, e também a tecnologia agrícola envolvida no cultivo.

Paralelamente à trama, Carol vai traçando um painel da proibição da maconha nos Estados Unidos, inserindo pequenos capítulos com a trajetória de personagens reais. Aparecem tanto figuras conhecidas, como o ativista Dennis Peron, quanto anônimos que a escritora garimpou em busca de boas histórias (um pioneiro das plantações de Mendocino, um guarda que supervisiona campos de maconha nas reservas florestais etc.). Fica claro que, a partir do caso de Robert Landall, a primeira pessoa nos EUA legalmente autorizada a fumar maconha por razões médicas, o reconhecimento dos benefícios clínicos da planta e a discussão por sua legalização ganham mais visibilidade. E chegam com mais força nos anos 1980, com a epidemia de Aids (a cannabis alivia diversos sintomas do vírus).

— Olhada no detalhe, a repressão é bastante maluca — diz Carol. — Na verdade, eu diria que ela mistura desinformação com interesses muito claros e palpáveis. A proibição acontece nos Estados Unidos na década de 1930 sobretudo para criminalizar negros e mexicanos. Podemos dizer que se perpetua depois por continuar sendo um bom jeito de criminalizar aqueles que estão “fora do sistema”. Não dava pra prender um hippie porque ele não lavava o cabelo ou era contra a Guerra do Vietnã.

UM NEGÓCIO BILIONÁRIO

Em sua última passagem pela Califórnia, no ano passado, Carol viu de perto a expectativa em torno da legalização:

— Não há um único dia em que alguma questão envolvendo o assunto não esteja na capa dos jornais. Ninguém sabe ao certo o que vai acontecer. Agora, no dia 1º de janeiro, as lojas começaram a vender a erva legalmente. Havia filas e tudo mais. A expectativa de negócios é alta, é claro. Para uma região como Mendocino, onde muitos cultivadores vivem num ponto meio nebuloso da lei, a mudança vai ser grande. Provavelmente alguns se adaptarão à nova lógica de mercado, outros não. Há chances fortes de que Mendocino vire uma espécie de Napa Valley da maconha.

Atravessado por conflitos de geração, “O clube…” reflete sobre como as buscas por estilos de vida alternativos ainda respingam nos mais jovens, e observa como elementos que nascem na contracultura acabaram incorporados ao mainstream (um dos personagens vê sua velha comunidade hippie se transformar em um Airbnb para jovens artistas descolados). Nesse sentido, o frenesi em torno da liberação da maconha também tem “uma dose de insanidade”, acredita a autora.

— Em primeiro lugar, porque a maconha ainda é ilegal em nível federal, embora a medicinal seja regularizada em mais da metade dos estados do país, e a recreativa tenha sido regularizada em um punhado de estados do Oeste. E parece que isso não vai mudar tão cedo. Em segundo lugar, porque a maconha virou um negócio bilionário, e só se fala em quanto as cidades e os estados estão arrecadando com ela. Essa transição nada sutil, de proibição irrestrita a Disneylândia da maconha, me parece impressionante.

LINHA DO TEMPO DA LEGALIZAÇÃO

1913

A Califórnia se torna o primeiro Estado americano a criminalizar a posse da maconha, em um adendo ao Poison Act, de 1907, que proibia cocaina sem receita.

1925

A lei endurece para a posse, que pode ser agora punida com até seis anos de prisão, enquanto a venda mercado negro pode dar de seis meses a seis anos.

1964

Com a popularização da maconha na cultura hippie, é criada na Califórnia a LEMAR, uma organização que une esforços por sua liberação.

1972

A Califórnia se torna o primeiro Estado a tentar descriminalizar a maconha com a Proposta 19, referendo que acabou sendo derrotada nas urnas.

2016

Em um novo referendo 34 anos depois, a Proposta 64 passa com 57% votos a favor e a venda e a distribuição da maconha se tornam legais no Estado.

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