Criminalizar uso de drogas é “paternalismo penal inadmissível”, diz juiz

Fotografia em plano fechado e vista superior das mãos de uma pessoa que está triturando um pouco de maconha e vestindo uma camiseta da Marcha da Maconha no Rio de cor verde, onde se lê em branco #SoltaOPreso! Foto: Dave Coutinho | Smoke Buddies.

A lei de drogas do Brasil é confusa e inconstitucional, uma vez que criminaliza a “autolesão”, ou seja, o uso. Para especialista, o modelo brasileiro, único no mundo, ainda abre brecha para se transformar usuários em traficantes. Saiba mais com as informações da ConJur.

Criminalizar o uso de drogas é o mesmo que proibir alguém de cometer uma lesão contra si. Além de não fazer sentido, é uma escolha política inconstitucional. Quem afirma é o juiz federal Marcelo Costenaro Cavali, auxiliar do gabinete do ministro Luís Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal.

“A criminalização da autolesão é um paternalismo penal inadmissível em um Estado de Direito”, afirma. “O Estado pretende saber o que é melhor para cada indivíduo. Punir alguém por usar droga é o mesmo que punir alguém por pular de bungee jump, comer carne demais ou por ser sedentária.”

Cavali foi um dos convidados em evento na Escola de Magistrados do TRF-3 em São Paulo na sexta-feira (7/12) para falar sobre a reforma da Lei de Drogas. O texto é objeto de estudos de uma comissão de juristas na Câmara que deve entregar o trabalho até o fim deste ano. Depois disso, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), deve nomear uma comissão especial para transformar o anteprojeto em projeto.

De acordo com Cavali, a Lei de Drogas estabelece um dos piores modelos possíveis para tratar do assunto: criminaliza o usuário, mas não o pune, o que resultou na transformação de usuários em traficantes pela jurisprudência.

A redação do artigo 28 da Lei de Drogas é muito subjetiva, afirma. É esse o dispositivo que diz ser crime portar droga para consumo próprio, mas estabelece penas alternativas.

“O sujeito preso na periferia é considerado tráfico, outro na universidade com a mesma quantidade é uso. Precisamos de critérios mais objetivos. A divergência de visões entre os juízes é gigantesca, pois cada um tem seus preconceitos também. O veredito fica dentro da vivência do juiz. É urgente a adoção de critérios objetivos pelo menos para tráfico e uso”, conclama.

Tipos abertos
O advogado Maurício Stegmann Dieter, professor de Criminologia da USP, concorda. Segundo ele, a Lei de Drogas contém “erros grosseiros”, como não definir o bem jurídico que pretende proteger.

“O que é saúde pública? Não tem uma definição consistente. O que estou criminalizando efetivamente? Se o bem jurídico é saúde pública, então o Supremo está coberto de razão, embora com algum atraso, em dizer que a criminalização do uso é completamente inconstitucional”, afirma. Ele se refere ao voto do ministro Gilmar Mendes em recurso que discute a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Para ele, criminalizar o uso é inconstitucional.

“Deixamos o bem jurídico como algo etéreo inalcançável. Saúde pública é lesão concreta a saúde de terceiros, o que nos dá um indicativo de que só poderíamos ter crimes de perigo concreto, nunca crimes de perigo abstrato”, completa Dieter. “Não é um escândalo?”

Venda e porte
De acordo com o professor, o Brasil tem 1.684 tipos de crime, mas cinco deles mantêm 82% da população carcerária presa: furto, tráfico, roubo, homicídio e “um crime relacionado à Lei de Armas”, nessa ordem. “Qual a diferença entre o tráfico de drogas e um negócio jurídico perfeito? A ilicitude do objeto, só. E quem decide o que é ilícito é o Estado”, aponta. “Uma portaria ordinária da Anvisa diz o que você pode ou não pode consumir, e se ela coloca codeína amanhã, você é traficante. Como podemos delegar uma norma penal em branco ao Executivo?”

Dieter afirma que o artigo 33 da Lei de Drogas, que define o crime de tráfico, é “um escândalo teórico”. Segundo o professor, o dispositivo sobrepõe dois tipos de atividade criminosa, o que causa confusão.

“Uma coisa são crimes formais, de mera atividade, como ter consigo. Outra coisa é venda, que supõe transação”, explica. “Se não tenho a diferenciação entre crimes de mera atividade e de resultado eu não posso dizer quais crimes podem ser tentados ou não. Se não sei a indicação se o crime é de pertencimento ou de venda eu não posso dizer se teve tentativa ou não.”

A confusão, diz, “não é gratuita”. “É para permitir que hajam imputações genéricas que autorizem meter o pé na porta de pessoas em Paraisópolis [bairro pobre em São Paulo]. Ele está no artigo 33 e o 33 permite qualquer tipo de imputação. Isso é Estado de Polícia: há droga à sua volta e qualquer coisa em relação a ela é crime.”

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#PraCegoVer: Fotografia em close e vista superior das mãos de uma pessoa triturando um pouco de maconha e vestindo uma camiseta da Marcha da Maconha no Rio de cor verde onde se lê em branco #SoltaOPreso!. Crédito Dave Coutinho

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