Como será a legalização da maconha no Canadá?

A legalização da maconha prometida pelo primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, chega ao país gerando controvérsias e resistência por parte de ativistas e empresários do ramo, visto que o modelo proposto visa o monopólio da distribuição de maconha por parte do estado, como já ocorre com as bebidas alcoólicas. Saiba mais no texto do historiador Henrique Carneiro para o blog Junho.

O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, foi eleito em 2015 com a promessa de legalizar a maconha no país a partir de 1 de julho de 2018, o que fará desse país o primeiro das economias desenvolvidas a dar esse passo, que será um marco no fracasso dos tratados internacionais proibicionistas e no início do fim da “guerra às drogas”.

Para isso, no entanto, será preciso definir quais as formas concretas em que isso se dará, o que depende de processo de regulamentação em cada uma das províncias.

O debate atual em curso traz dois paralelos interessantes: com o processo de proibição e depois de regulamentação das bebidas alcoólicas, ocorrido no início do século XX, e com o debate mais amplo sobre os modelos de intervenção do estado na economia, inclusive com formas de monopólio, como ocorre com a distribuição das bebidas no Canadá, em contraste com as formas privadas de produção e distribuição de mercadorias.

A proposta de lei federal C-45 remete às legislações provinciais o direito de estabelecer quem poderá fazer o comércio de produtos canábicos e de que maneira: “Toda pessoa pode possuir, vender ou distribuir Cannabis se ela está autorizada sob o regime de uma lei provincial”[1].

A totalidade das províncias canadenses já estabelecem o monopólio estatal da distribuição de bebidas alcoólicas em cada província, conforme regras existentes em relação ao comércio de bebidas, que variam de província a província. Em Ontario, por exemplo, a idade mínima para comprar bebidas é de 19 anos, enquanto em Quebec é de 18.

O projeto de lei federal sobre a maconha mantém a criminalização das formas não regulamentadas de produção, posse, uso e comércio de derivados de maconha. Ela estabelece também um direito muito restrito de cultivo doméstico, limitando a apenas quatro plantas por residência, cuja altura não deve ultrapassar um metro. Não está definido também como seriam regulamentados os produtos canábicos comestíveis.

O grande debate ocorre em relação às formas de distribuição, pois no âmbito da produção já existem 58 produtores autorizados para atender a demanda da maconha medicinal já vendida legalmente (32 em Ontario, 14 em British Columbia e apenas 1 no Québec). Grandes empresas como Canopy Growth, MYM Nutraceuticals, The Green Organic Dutchman, Écuries SiCi Stan, Aurore e outras estão investindo dezenas de milhões de dólares para ampliar essa produção visando montantes de centenas de milhares de toneladas para atenderem um mercado potencial de maconha recreacional que o IRIS (Institut de recherche et d`informations sócio-économiques) avaliou em 2016 que seria da ordem de 1,3 bilhões de dólares de imediato e de 3,2 bilhões dentro de uma década[2].

Podemos ver nessa polêmica um paralelo com os anos de 1920, pois o Canadá, diferentemente dos EUA, nunca proibiu a produção de bebidas alcoólicas, mas apenas interditou brevemente a venda interna e o consumo público. Ao se diferenciar do proibicionismo estrito estadunidense que durou mais de 13 anos, permitiram o crescimento de uma enorme indústria do álcool, voltada em grande parte para o abastecimento por contrabando do mercado estadunidense. Essa indústria criou a primeira marca de sucesso de um whisky não-europeu, a Seagram, montou a maior destilaria do mundo e constituiu grandes fortunas em torno da produção de destilados e de cerveja, como a família Bronfman dos destilados e as empresas Molson e Labbat, de cervejas.

Embora o proibicionismo canadense do álcool tenha sido de menor duração que o estadunidense, a legislação pós-proibição no Canadá dos anos de 1920 e 1930, foi extremamente rigorosa com as formas de utilização públicas, Em Ontario, por exemplo, a proibição terminou em 1927, mas apenas para se permitir compra em lojas estatais para uso em locais residenciais fechados. O uso público, em restaurantes e bares, permaneceu proibido até 1934. Até hoje em dia, como também ocorre nos EUA, o uso público de bebidas é interditado, salvo em eventos especialmente autorizados.

Com a maconha, o roteiro atual tem enormes semelhanças. Embora proibida, a produção clandestina de maconha, especialmente em British Columbia, criou uma cepa especial de enorme sucesso, a BC Bud, e alimentou uma economia paralela capaz de criar até mesmo o primeiro milionário desse negócio, Marc Emery, chamado de “príncipe da maconha” (the Prince of Pot), e que chegou a ser deportado para os EUA onde cumpriu pena. Fundador do Marijuana Party of Canada, recentemente foi novamente detido por abrir 8 lojas não autorizadas de venda de maconha em Montréal, que foram logo em seguida fechadas pela polícia[3].

Este setor pioneiro do empreendedorismo da indústria canábica vem se opondo ao projeto de lei federal que aponta para um monopólio estatal. O próprio Marc Emery chegou a declarar que vai fazer campanha pelo boicote das lojas que vierem a funcionar sob controle estatal, ameaçando até mesmo de impedir fisicamente a entrada de clientes no seu interior[4]. Muitos cultivadores sentem como se a sua expertise no desenvolvimento de variedades diversas estivesse sendo sequestrada pelo governo que iria vender produtos homogêneos e de teores de THC limitados. A manutenção da criminalização com diversas sanções penais para as formas ilícitas de posse, produção ou comércio é também alvo de muitas críticas por parte do ativismo anti-proibicionista que preferia que houvesse simplesmente a descriminalização plena, igualando a maconha a outras substâncias lícitas como o tabaco e o álcool, regulamentadas sob legislação comercial e de controle sanitário, mas não sob a severidade de uma criminalização penal.

Por outro lado, os sindicatos do funcionalismo público e, especialmente, de empresas estatais de distribuição de bebidas, como a SAQ, no Quebec, se posicionam favoráveis ao monopólio estatal na venda de maconha. Pierre-Guy Sylvestre, economista e conselheiro sindical do SCFP (Sindicato Canadense da Função Pública), declara que “é melhor enquadrar a sua venda e o seu consumo, e não fazer disso um mercado lucrativo”[5].

A distribuição estatizada das bebidas é o modelo que inspira a proposta de um monopólio similar para a maconha, inclusive com as mesmas empresas que já exploram o comércio de bebidas e que, apenas no caso do Quebec, já fornece cerca de um bilhão de dólares por ano às rendas do estado provincial.

O fato das rendas reverterem majoritariamente para as províncias é um desenvolvimento de uma política singular de estatização do comércio de bebidas existente no Canadá e na Escandinávia, onde surgiu no século XIX, na cidade sueca de Gothemburg, em que a municipalidade monopolizou a venda de bebidas e de suas rendas, dando origem ao que ficou conhecido como “sistema de Gothemburg”.

O argumento pró-estatização se baseia não só nos aspectos de controle social como número e localização dos pontos de venda, restrições a menores de idade, monitoramento da qualidade dos produtos e de contaminações e adulterações, e fixação de preços, como no fato de que a centralização das rendas do comércio pelos estados provinciais ajudaria a equilibrar os seus orçamentos. Afinal, isso já ocorre com a distribuição de bebidas e com os cassinos e loterias.

O excessivo controle do estado, afirmam, entretanto, os adversários dessa proposta, impediria o desenvolvimento de uma cultura de aficionados, baseada em produtores e distribuidores de variedades específicas e singulares, e na possível existência de locais de consumo público, como os coffee-shops holandeses. Isso, porém, seria compatível com uma distribuição atacadista sob monopólio, com permissão de venda varejista de pequenos comércios para venda e consumo, à exemplo do que já existe com as bebidas, monopolizadas no atacado pelo estado, mas disponíveis em pequenas lojas e super-mercados, restaurantes e bares. Os produtores de cervejas e cidras artesanais, por exemplo, estão isentos do monopólio estatal de venda de bebidas.

O modelo do intervencionismo estatal aparentemente não seria adequado para controlar pontos de venda para consumo público, afinal não parece haver ninguém defendendo o monopólio de estado de todos os bares e restaurantes.

O modelo privado, como ocorre em alguns estados dos EUA, poderia levar inevitavelmente a um processo de oligopolização que correria o risco de repetir o contexto das indústrias do álcool e do tabaco, em que as demandas da saúde pública e da destinação social dos lucros desaparece em função da lógica capitalista de busca da multiplicação ilimitada dos lucros por parte de imensas empresas transnacionais que transformariam a maconha numa nova commoditydas mais rentáveis.

Curiosamente, o centro do debate atual se concentra na distribuição e não na produção. No âmbito da fabricação, grandes empresas dominam a indústria do álcool em todo o mundo, inclusive no Canadá (no Brasil, por exemplo, a Ambev é uma das maiores empresas do país).

O mesmo está em curso com o mercado canábico em muitos países, mas especialmente nos EUA e também no próprio Canadá, em que investimentos de centenas de milhões de dólares estão sendo realizados para a construção de plantas industriais de produção em estufas com alta tecnologia.

A Canopy Growth Corporation, a maior empresa legal de Cannabis no Canadá, por exemplo, estava avaliada num valor de 940 milhões de dólares no início de 2017[6], e já tem uma subsidiária no Brasil onde pretende atuar com parcerias locais para o fornecimento de produtos de maconha medicinal[7].

Enquanto o uso medicinal vai se consagrando como recurso precioso e necessário para muitos pacientes e gerando uma enorme atividade econômica com grandes empresas, o uso pessoal medicinal e recreativo e a produção caseira continuam a ser criminalizadas como a maior atividade do sistema policial e judicial, causando um encarceramento em massa, dos quais uma enorme porção dos aprisionados é relacionada a crimes por uso, posse e pequeno comércio de maconha.

A proposta de legalização em curso no Canadá representa um ponto de inflexão decisivo na crise do paradigma proibicionista e terá repercussões globais. Resta saber se esse modelo de legalização vai continuar a manter esferas de ilegalidade para indivíduos e pequenos produtores, enquanto viabiliza a constituição da maconha num grande negócio internacional, com empresas cotadas nas bolsas de valores e se dedicando a uma produção industrial ou se abrirá a possibilidade de um mercado atacadista sob controle estatal com admissão da existência simultânea de uma rede varejista de pequenos comércios e de um setor alheio às esferas da mercantilização produzindo de forma doméstica ou cooperativada cultivos de auto-produção para os consumidores que não quiserem se tornar reféns nem de traficantes, legais ou ilegais, nem de um estado paternalista e hipercontrolador das dimensões biopolíticas da existência.

Notas

[1] “69 (1) Toute personne peut posséder, vendre ou distribuer du cannabis si elle est autorisée à vendre du cannabis sous le régime d’une loi provinciale “

[2] Jean-François Venne, “Cannabis: la SAQ comme meilleure distributrice?”, Le Devoir, 17/09/2017, p.H3.

[3] Laura Fraser. Prince of Pot Marc Emery and wife released on $30K bail and dispensary reopens. CBC News, Mar 10, 2017. Disponível em: http://bit.ly/2xCA85I

[4] “Jencourage tout le monde à boycotter les magasins du governement. Nous tenterons dempêcher physiquement les gens d`y entrer”, in Le Devoir, 17/09/2017, p. A7.

[5] “cest de mieux encadrer sa vente et sa consommation, pas den faire um marchè lucratif”, in Le Devoir, 17/09/2017, p. H3.

[6] Canopy Growth Corporation. Wikipedia. 25 August 2017. Disponível em: http://bit.ly/2fwKDQk

[7] Canadian marijuana company Canopy Growth forms Brazilian partnership. thestar.com. June 28, 2016. Disponível em: http://bit.ly/292t5DZ

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