Medicamento que vem da Cannabis

Fotografia que mostra a silhueta de uma mão segurando um conta-gotas contendo uma substância amarela translúcida, parecida com óleo de canabidiol, acima de um frasco de cor âmbar e um fundo branco. Imagem: Léo Ramos Chaves.

Com uso bastante fundamentado para epilepsia, canabidiol é alvo de pesquisa intensa. Saiba mais no artigo de Maria Guimarães para a Pesquisa FAPESP

Certas epilepsias não respondem aos medicamentos existentes, submetendo crianças e adultos a uma sucessão de episódios convulsivos que impedem o desenvolvimento e uma vida normais. Para esses casos, o uso de canabidiol (CBD) — substância produzida pela planta Cannabis sativa — está se tornando uma realidade cada vez mais disseminada no mundo. Uma série de outras possibilidades de uso terapêutico desse composto e outros originados da maconha, os canabinoides, ainda são menos fundamentados e recebem crescente atenção de pesquisadores. É o caso de dor crônica de várias origens, ansiedade, estresse pós-traumático, autismo, Alzheimer, esquizofrenia, entre outros males para os quais as farmácias oferecem ajuda limitada.

Resultados de pesquisas internacionais, publicados em artigos científicos, corroboram a utilidade do canabidiol como adjuvante em tratamentos de epilepsia, de acordo com revisão publicada em 2018 na revista Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry, pelo grupo da epidemiologista australiana Louisa Degenhardt, do Centro de Pesquisa Nacional em Drogas e Álcool, em Sydney. Em outra revisão, publicada em dezembro de 2019 na Lancet Psychiatry, ela alerta para a escassez de dados convincentes que justifiquem o uso disseminado de canabinoides para depressão, ansiedade, psicose e outros distúrbios psiquiátricos. A meta-análise que seu grupo fez, no entanto, incluiu tanto estudos investigando o uso da planta inteira quanto de compostos isolados, chegando a uma predominância de THC enquanto princípio ativo. As conclusões frisam a necessidade de mais estudos.

Alguns dos estudos citados nas revisões foram feitos na USP, que marca forte presença nos trabalhos com canabidiol — os pesquisadores brasileiros não têm acesso ao THC. De acordo com a plataforma Web of Science, a instituição paulista responde por cerca de 7% da produção científica mundial, seguida por centros em Israel, no Reino Unido e nos Estados Unidos. A liderança se deve sobretudo à atividade dos grupos dos psiquiatras Antonio Zuardi, José Alexandre Crippa e Jaime Hallak, e do médico farmacologista Francisco Silveira Guimarães, todos do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP-RP).

Além de ser um foco de pesquisa, a possibilidade de contribuir para uma série de tratamentos tem tornado as menções na mídia mais e mais frequentes em anos recentes. Em alguns países, como parte dos Estados Unidos, Uruguai e Canadá, a medida adotada foi liberar o uso medicinal da maconha — por vezes a própria erva a ser fumada —, uma decisão controversa.

No Brasil esse caminho não está no horizonte. O que se propõe é o uso do canabidiol, a substância canabinoide destacada por ter efeitos terapêuticos. “Ações como a marcha da maconha têm um efeito pequeno”, pondera Antonio Zuardi. “A indústria percebeu que há um mercado, e essa pressão é muito mais forte”. Em março, entrou em vigor a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovada em dezembro, que permitirá a fabricação no Brasil de medicamentos com predominância de canabidiol como princípio ativo, em duas categorias quanto ao teor de tetraidrocanabinol (THC) em sua composição (no máximo 0,2%, e mais de 0,2%), e sua venda em farmácias. Os produtos com maior concentração de THC devem ser destinados apenas a pacientes com cuidados paliativos ou que sejam refratários a outras medicações ou doses. O THC é a substância responsável pelos efeitos psicotrópicos da maconha (que alteram a consciência) e, por isso, considerada mais perigosa. As autorizações continuarão a ser concedidas, como já acontece hoje, para uso compassivo — quando não há medicação eficaz. A denominação oficial “produtos à base de cannabis” significa que ainda não seriam considerados medicamentos, mas a mudança permitiria à indústria farmacêutica disponibilizar novos produtos nas farmácias em caráter provisório.

Apenas no primeiro trimestre de 2019 o número de pedidos de autorização para a importação de fármacos à base de cannabis ultrapassou 6 mil. Estima-se um crescimento rápido desse mercado se houver produção nacional, embora os compostos não sejam a solução para tudo e todos como as movimentações comerciais podem fazer crer. Apenas um medicamento é vendido no Brasil, curiosamente com um teor de THC equivalente ao de canabidiol. É o Mevatyl, autorizado pela Anvisa em 2017 para o controle de espasmos causados pela esclerose múltipla e produzido pela britânica GW Pharmaceuticals, líder no mercado internacional. Embora tenha caído, o custo do tratamento ainda é alto e pode ficar por volta de R$ 1,5 mil por frasco de 30 mililitros, que dura cerca de um mês conforme o caso. Com o nome de Sativex, o mesmo medicamento está autorizado em 28 países, que não incluem os Estados Unidos.

Zuardi estima que os primeiros fármacos brasileiros a chegarem ao mercado serão anticonvulsivantes para uso conjugado com outros remédios em síndromes epiléticas resistentes à medicação. “Sendo otimista, ainda neste ano”, prevê.

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Rumo à clínica

O grupo de Ribeirão Preto está envolvido na linha de frente da pesquisa que pode conduzir ao desenvolvimento de um novo medicamento com canabidiol como princípio ativo e acaba de encerrar um ensaio clínico que envolveu 15 crianças e adolescentes entre 2 e 18 anos, com uma diversidade de síndromes epiléticas. Os dados ainda estão em análise, mas Zuardi adianta: “Os resultados foram excelentes”. De acordo com o pesquisador, em 60% dos pacientes as crises caíram pelo menos à metade, 40% dos quais ficaram livres de convulsões. A redução nas crises foi menor nos outros 40% dos pacientes e uma dessas crianças ficou sem nenhum benefício.

Não é suficiente, o psiquiatra admite. Foi um estudo aberto, no qual todos sabem o tratamento que as crianças recebem. “O canabidiol tem muita fama, e só por saberem que estão recebendo essa medicação as famílias já fazem todo o tratamento com mais cuidado”, conta. Resultados confiáveis vêm apenas com o ensaio duplo-cego, em que nem as famílias nem os pesquisadores sabem quais pacientes são medicados e quais recebem uma substância inócua, o placebo. “Esse estudo está em andamento e temos metade dos dados coletados, devemos terminar em meados do ano”, prevê.

Ante a dificuldade de obter o fármaco necessário em quantidade suficiente para os testes, o grupo de Ribeirão Preto firmou convênio com o laboratório farmacêutico Prati-Donaduzzi, que tem interesse em desenvolver medicamentos para entrar nesse mercado. O teste concluído agora foi proposto em 2014, mesmo ano em que o laboratório GW registrou um estudo com o mesmo intuito no site clinicaltrials.gov — repositório internacional oficial para esses testes. A empresa avançou nos testes e em 2018 lançou o Epidiolex, contra epilepsia, o primeiro medicamento cujo princípio ativo é quase unicamente o canabidiol aprovado para venda nos Estados Unidos. O ensaio brasileiro começou apenas em 2018, quando recebeu autorização da Anvisa: se der certo, o medicamento a ser produzido terá quase exclusivamente CBD como princípio ativo, mas dissolvido em veículos diferentes em relação ao similar britânico.

Via de mão dupla

Os estudos brasileiros na área vêm de longa data. Em 1990, Guimarães, que poucos anos antes terminara o doutorado sob orientação de Zuardi, publicou um artigo na revista Psychopharmacology descrevendo os resultados do uso do labirinto em cruz elevado, um modelo de ansiedade, em ratos. O experimento mostrava que o canabidiol era eficiente como ansiolítico para esses animais, mas apenas em doses médias. Nas doses mais altas testadas, o efeito se perdia — o que explicaria resultados anteriores, de outros grupos, de que o composto não era adequado contra a ansiedade.

Como parte da repercussão, em 1991, Guimarães recebeu uma carta datilografada do bioquímico búlgaro-israelense Raphael Mechoulam, da Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel, o primeiro a elucidar as estruturas químicas do CBD e do THC e por isso uma referência na área. Ele propunha que Guimarães testasse os efeitos de modificações na estrutura molecular do CBD. Os resultados, publicados em 1994 na revista General Pharmacology, mostraram que algumas das formas modificadas do CBD (batizadas com o prefixo HU, de Hebrew University) eram tão eficazes quanto o canabidiol natural nos ratos que exploravam o labirinto em cruz: moléculas artificialmente alteradas nem sempre funcionam bem. Os resultados, somados a outros que se seguiram, fortaleceram a colaboração entre o grupo de Mechoulam e o da USP-RP. Um fruto mais recente é o desenvolvimento — e teste — de compostos modificados do CBD com a adição de flúor em diferentes posições da molécula. A maior potência de um deles, quando comparado ao CBD natural, rendeu uma patente aos grupos israelense e brasileiro, recentemente adquirida por uma empresa norte-americana, a Phytecs Pharm, com o intuito de desenvolver medicamentos dermatológicos.

Os grupos de Zuardi e de Guimarães trabalham em estreita colaboração no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Translacional em Medicina (INCT-TM), coordenado por Jaime Hallak e José Alexandre Crippa. A medicina translacional visa usar experimentos feitos em animais para direcionar ensaios clínicos, e no outro sentido voltar aos modelos animais para investigar a fundo os mecanismos por trás de observações feitas nos pacientes — formando uma via de mão dupla. “A transposição entre modelo e ser humano não é direta, mas fornece informações importantes para estudos clínicos, como os caminhos e a segurança da droga”, afirma Zuardi. “Se há um efeito consistente da droga sem dano aos animais, consideramos testar em seres humanos”.

Com base no funcionamento do sistema endocanabinoide, ele é categórico sobre o potencial de saírem medicamentos importantes dessas pesquisas. O psiquiatra explica que o cérebro tem mais receptores para canabinoides do que para neurotransmissores reconhecidos como centrais em seu funcionamento. Todas as regiões do sistema nervoso são repletas desses receptores, que cumprem um papel modulatório. “Se existe um sistema tão importante, as drogas que interferem nele podem tanto causar doenças como atenuá-las”, diz Zuardi. “O canabidiol é como uma Disneylândia para farmacologistas”, brinca Guimarães. “Já foram descritos mais de 60 alvos em estudos in vitro, mas ainda não se sabe com certeza como a molécula atua nesses receptores.” Na planta Cannabis sativa, já se conhece mais de 100 canabinoides, embora a esmagadora maioria ainda seja obscura quanto a seus efeitos e ação nos receptores animais.

Efeito neuropsiquiátrico

De acordo com Guimarães, o grande número de alvos farmacológicos com os quais o CBD interage para produzir seus efeitos contraria um dogma da farmacologia segundo o qual quanto mais específico um fármaco, melhor, porque minimizaria o risco de efeitos adversos. A atuação naturalmente sistêmica dos canabinoides, ao contrário, está no cerne de seu potencial farmacológico e também da baixa incidência de efeitos adversos. A serotonina, por exemplo, um importante neurotransmissor, é de alguma maneira modulada pelo canabidiol, conforme mostram estudos in vitro. Assim, qualquer desequilíbrio nessa mediação pode causar depressão.

Um dos focos do grupo é justamente avaliar o potencial do canabidiol como antidepressivo, mostra artigo liderado pela farmacologista Sâmia Joca, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas na USP-RP, publicado em fevereiro de 2019 na revista Molecular Neurobiology. Os experimentos sujeitaram ratos a testes de nado forçado por cinco minutos, um modelo comum para avaliar o efeito de antidepressivos. O comportamento natural dos ratos é aprender a boiar, fazendo apenas os movimentos mínimos necessários para manter a cabeça fora da água. Medicados com antidepressivos, os roedores nadam mais constantemente — efeito que foi também observado nos testes com canabidiol. Bastou injetar o composto dentro da cavidade abdominal meia hora antes do experimento para a medicação agir, um efeito que se mantinha por até sete dias. O desenvolvimento de antidepressivos de ação rápida seria uma ótima notícia para quem precisa por vezes esperar semanas, com risco de suicídio nos casos mais graves, até que o remédio cumpra sua função.

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A ação generalista do CBD também está ligada a seu efeito anti-inflamatório e antioxidante. “Os processos inflamatórios estão por trás de muitas condições ligadas ao sistema nervoso central”, resume Guimarães. Vem daí, entre outros efeitos, um papel neuroprotetor.

“Temos fortes indícios de benefícios dos canabinoides para doenças neurodegenerativas”, completa a biomédica Fernanda Crunfli, atualmente em estágio de pós-doutorado no Laboratório de Neuroproteômica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenado pelo biólogo Daniel Martins-de-Souza. Durante o doutorado no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, orientado pela bióloga Andréa Torrão, ela injetou no cérebro de ratos uma substância chamada estreptozotocina, tóxica para o sistema nervoso, capaz de mimetizar a morte neuronal e o prejuízo cognitivo causados pela doença de Alzheimer. O comportamento natural de roedores é investigar por mais tempo objetos novos em comparação aos já conhecidos, mas essa diferença desaparece quando há danos cognitivos. Crunfli tratou as cobaias por sete dias com o canabinoide sintético Acea e viu que os ratos passavam a ter melhor memória no reconhecimento dos objetos. Além disso, verificou-se uma maior sobrevivência das células devido ao aumento na produção de proteínas que combatem a morte neuronal por apoptose, conforme mostra artigo publicado em abril na revista Neurotoxicity Research. De acordo com a pesquisadora, isso acontece porque a medicação reduz a neuroinflamação e o estresse das células, que caracterizam doenças neurodegenerativas como a de Alzheimer.

Outro efeito característico das doenças neurodegenerativas é uma alteração no metabolismo da glicose, fonte de energia do sistema nervoso, que agora a biomédica estuda no cérebro de ratos por meio de um projeto em parceria com a fisiologista Caroline Real, pesquisadora de pós-doutorado no Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP, no grupo do médico nuclear Carlos Buchpiguel e da farmacêutica Daniele de Paula Faria. Em resultados preliminares, o grupo viu que tanto o tratamento com Acea quanto com CBD reverteram os prejuízos cognitivos e melhoraram o metabolismo da glicose, aprofundando o entendimento dos mecanismos envolvidos.

Há indícios de que pessoas com esquizofrenia também possam se beneficiar de canabidiol, como mostrou o grupo de Zuardi desde as primeiras pesquisas em pacientes há cerca de 25 anos. O tema é delicado, em parte porque o risco de desenvolver a doença triplica para adolescentes que fumaram muita maconha. Analisando os compostos isolados, já é sabido que o THC piora o quadro de psicose em esquizofrênicos.

O CBD, por outro lado, parece ajudar no controle de surtos psicóticos. Vários grupos de pesquisa estão trabalhando para esmiuçar os efeitos e transformar esse longo histórico de conhecimento em propostas para tratamento. “Alguns sintomas da esquizofrenia, como delírios e alucinações, melhoram com antipsicóticos existentes”, diz a biomédica Vanessa Abilio, do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Outros, como déficits cognitivos, dificuldade de desempenho social e embotamento afetivo, carecem de novas possibilidades de medicação.” O canabidiol surgiu como uma alternativa para esses últimos sintomas, que o grupo coordenado por ela estuda em modelos animais. Os ratos que mimetizam a doença andam muito de um lado para o outro, comportamento que Abilio explica ter uma base neuroquímica semelhante à do delírio humano. Eles também não demonstram interesse especial por ratos que encontram pela primeira vez, um sinal de limitações sociais.

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A ideia é delinear um tratamento com canabidiol que possa atuar como preventivo para pessoas consideradas de alto risco para desenvolvimento da esquizofrenia devido ao histórico familiar ou a alterações comportamentais típicas, como ela e colegas explicam em artigo publicado em 2018 na revista Frontiers in Pharmacology. Há ainda, porém, um longo caminho entre os estudos em modelos animais e a possibilidade de se chegar a essa medicação.

Também na fronteira entre estudos em modelos animais e abordagens clínicas, o biólogo Renato Malcher, da Universidade de Brasília (UnB), tem verificado em roedores uma relação entre o sistema endocanabinoide e a probabilidade de filhotes nascerem com aspectos identificados com o autismo. Ele pôde estender o estudo para seres humanos graças à AMA+ME, uma associação que fornece medicação a pacientes que obtêm autorização judicial e que, em 2016, tratou 18 pacientes autistas com um composto de CBD e THC, em proporção de 75 para 1, por entre seis e nove meses. Malcher analisou os resultados e detectou melhoras em uma série de parâmetros, especialmente convulsões, transtorno de déficit de atenção, distúrbios do sono e dificuldades de comunicação e interação social em 14 dos pacientes (três abandonaram o tratamento e um não respondeu a ele), conforme relata em artigo publicado em outubro de 2019 na revista Frontiers in Neurology. A ressalva é não ter sido um estudo planejado, com todos os controles necessários a um ensaio clínico. “Foi o estudo possível de ser feito: muitos pacientes requisitaram o tratamento ao mesmo tempo e surgiu a oportunidade”, conta. Assim, a melhora das crianças foi medida conforme a percepção dos pais, em questionários padronizados com acompanhamento do clínico responsável, Paulo Fleury-Teixeira. Resultados semelhantes foram relatados pelo grupo do pediatra Matitiahu Berkovitch, do Centro Médico Assaf Harofeh em Tel Aviv, Israel, publicado em janeiro de 2019 na revista Frontiers in Pharmacology. O acompanhamento por dois meses de 53 crianças medicadas com canabidiol revelou, por meio de relatos dos pais, uma melhora em uma série de sintomas associados ao autismo, como ataques de raiva, hiperatividade, distúrbios do sono e ansiedade.

Corrida de obstáculos

O neurocientista Renato Filev, pesquisador de pós-doutorado no grupo do psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), encontrou percalços sintomáticos de como a legislação pode ser um entrave para a pesquisa com canabinoides. No doutorado — sob orientação do neurocientista Luiz Eugênio Mello, também na Unifesp —, ele estudou em camundongos o uso de THC contra efeitos do álcool, conforme publicou em 2017 na revista Alcohol. “O efeito foi satisfatório na redução do comportamento de locomoção induzido pelo álcool”, resume. Agora, sua intenção é continuar investigando o uso de canabinoides para o tratamento de dependência química, especificamente de crack, continuando um trabalho feito por Silveira nos anos 1990. Mas ainda não conseguiu pôr em andamento o projeto.

Em 2017, Filev obteve financiamento por meio de um convênio entre a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) e a Unifesp. Mas como protocolos para a obtenção de uma substância controlada — mesmo por meio de um acordo de doação por uma empresa — não são habituais na universidade, os trâmites burocráticos não estão estabelecidos e acabaram impedindo que o projeto fosse executado. Ele agora está em busca de um novo financiamento e parcerias que lhe permitam fazer o ensaio clínico, que defende como inovador. “Não existe padrão ouro para tratamento de dependência de crack”.

Não há perspectivas de melhora na possibilidade de pesquisadores obterem canabidiol: em dezembro a Anvisa recusou a regulamentação de plantio de Cannabis sativa. Por enquanto, só pode plantar maconha a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), da Paraíba, instituída em 2015 e que produz extratos para pacientes associados.

Da farmácia doméstica ao mercado

Enquanto é necessário importar extratos a altos preços, com uma boa dose de burocracia, de demora para entrega e incerteza nos teores de canabinoides, muitas famílias brasileiras se organizam em associações como a Abrace e obtêm autorizações judiciais individuais para plantio e produção artesanal de óleo. É o caso da bancária Maria Aparecida Carvalho, a Cidinha, que em 2014 descobriu que o CBD poderia ajudar sua filha Clárian, à época com 10 anos, que sofre com a síndrome de Dravet. Além de convulsões frequentes e prolongadas, a doença afeta a capacidade de transpiração e o tônus muscular, entre outros problemas, impossibilitando uma vida normal. Hoje Cidinha é presidente da Associação Cultive, cujo diretor científico é o psicofarmacólogo Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pioneiro no estudo de canabinoides no Brasil. Por intermédio da associação, a equipe ensina outras famílias a obter medicação e a extrair o óleo da planta.

Quem precisa de medicamentos à base de cannabis tem atualmente vários outros desafios além do custo, a começar por encontrar um médico que a prescreva. Por isso, Viviane Sedola, formada em relações públicas, fundou a Dr. Cannabis. A empresa mantém uma plataforma que congrega médicos que receitam canabinoides e podem ser buscados por pacientes. Também auxilia no processo de preparar a documentação necessária para pedir aprovação à Anvisa e ajuda a encontrar fornecedores para a importação. Diante das mudanças recentes anunciadas pela agência, que pretende desburocratizar e acelerar o processo, a Dr. Cannabis pode ter que mudar seu foco de ação.

Sedola não vê isso como um problema: ela tem batalhado pela regulamentação dos canabinoides e explica que o Canadá é o único país de grandes dimensões que conseguiu regulamentar o plantio. “Não se pode pensar só no agronegócio, só no paciente, só na economia”. Como é preciso olhar todos os lados, ela defende que a decisão venha do Poder Legislativo — e avisa que a comissão da Câmara dos Deputados tem avançado: em fevereiro se reuniu, tendo como convidado o ex-presidente da Anvisa William Dib, e representantes foram à Colômbia entender a regulamentação daquele país.

“Presumo que canabidiol, THC e outros canabinoides se tornarão drogas oficiais e serão prescritos dessa maneira pelos médicos”, diz Mechoulam, da Universidade Hebraica de Jerusalém, que calcula que em Israel cerca de 50 mil pacientes tenham oficialmente acesso à cannabis medicinal para uma variedade de doenças. O canabidiol é visto como seguro porque não há registro de mortes induzidas por seu consumo, mas não significa que seja inócuo. O principal problema parece ser que ele inibe enzimas do fígado que metabolizam outros medicamentos, então é necessário cuidado com as interações medicamentosas em tratamentos que exigem uma combinação de fármacos. “Todos os medicamentos são perigosos”, afirma Guimarães. “Alguns são úteis”. Em sua opinião, não há dúvida de que os canabinoides o são. “Seu uso terapêutico é um caminho sem volta”, prevê.

Pixel de rastreamento: Pesquisa FAPESP

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia que mostra a silhueta de uma mão segurando um conta-gotas contendo uma substância amarela translúcida acima de um frasco de cor âmbar e um fundo branco. Imagem: Léo Ramos Chaves.

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