A ditadura viva e atuante na guerra às drogas

Fotografia de dois militares, um atrás do outro, portando fuzis apontados para baixo, estando o da frente com máscara de caveira e o outro com máscara preta, próximos a um poste de energia; ao fundo, desfocado, pode-se ver uma criança, vestindo uma camiseta amarela e azul, caminhando pela rua. Guerra às drogas.

“A guerra às drogas é a saída para um regime ditatorial se pintar de democrático enquanto mantém a relação de força e medo”. Entenda mais sobre o tema no artigo de Luís Carlos Valois* para a CartaCapital.

A guerra às drogas é uma das provas de que a guerra em si é realmente a continuação da política por outros meios, continuação da política de classe, de exploração e de extermínio.

E não fui eu, defensor do fim dessa guerra insana, insensata e impossível, que assim a denominei. Foram os Estados Unidos, por intermédio de seu presidente Nixon que, em 1971, resolveram passar a denominar a sua política mundial sobre drogas de guerra.

Como em toda guerra, o soldado não tem regras no campo de batalha. Deve ter discricionariedade, arbítrio para atirar e matar quem estiver do outro lado. Ao chamar a política de drogas de guerra, Nixon conseguiu desviar a atenção de todos da então recente chacina, mas também fracasso militar, no Vietnã; ao mesmo tempo em que revelou a faceta mais política do que deveria apenas ser uma medida governamental de saúde pública.

Os EUA, que começaram toda essa guerra expulsando chineses com a justificativa do ópio; depois matando e encarcerando negros com a desculpa da cocaína; extraditando, prendendo e assassinando latinos sob o pretexto destes estarem estimulando o uso da maconha; perceberam antes de todos que a droga é um ótimo subterfúgio para a liberdade de repressão.

Reprimir em um sistema que se pretende democrático exige justificativas, as quais deveriam vir fundamentadas, escritas, sempre se permitindo a publicidade e tudo mais que impeça uma repressão arbitrária.

As drogas caem como uma luva para um regime que quer sustentar a aparência de democrático, mas quer continuar mantendo a população com medo.

Esta argumentação, a minha neste texto, é de dificílima comprovação. Dizer que o Estado faz uso da política de drogas para prender seletivamente, arbitrariamente, criando um clima de terror que favoreça a ameaça da força policial sobre a cabeça de todos os cidadãos, é uma afirmação que, conquanto possamos sentir, e pobres e negros sentem diariamente, raras vezes podemos comprovar.

Embora poucos acreditem na polícia, basta a foto ou a cena de uma pessoa algemada, na frente de uma mesa com um monte de pacotinhos, um emblema dourado e um revólver, que a sentença vem logo: traficante; e nem precisa mais do devido processo legal, contraditório e essas outras besteiras que os “direitos humanos” inventaram. Na verdade, as pessoas só acreditam na polícia para os outros.

Somente quando os sistemas políticos se tornam explicitamente repressivos e autoritários, e quem está no poder não tem pudor de dizer quem ele quer ver na cadeia, podemos comprovar que as drogas são só um subterfúgio para o uso da força e do medo. Eu explico como.

Fotografia em primeiro plano de um agente do exército segurando um fuzil apontado para baixo e vestindo uma máscara de caveira e uma mulher, vestindo uma camiseta regata azul, logo atrás (parte direita da foto), em uma das vielas da favela da Rocinha, no Rio.

#PraCegoVer: fotografia em primeiro plano de um agente do exército segurando um fuzil apontado para baixo e vestindo uma máscara de caveira e uma mulher, vestindo uma camiseta regata azul, logo atrás (parte direita da foto), em uma das vielas da favela da Rocinha, no Rio. Créditos: Fernando Frazão – EBC.

No momento triste pelo que passa o Brasil, em que autoridades têm o despudor de negar a ditadura militar recente em que vivemos, relembrar o Relatório Final da Comissão da Verdade (www.cnv.gov.br) ajuda a que não nos esqueçamos do passado, mas permite igualmente desvendar esse lado da guerra às drogas a que estou me referindo.

Dentre inúmeros mortos, desaparecidos e torturados pelo regime militar, pelo menos em três ocasiões ficou registrado naquele relatório ter a guerra às drogas servido de subterfúgio para a prisão ou ao menos para dar uma aparência de legitimidade àquele agente fardado do Estado que estava lá para sequestrar e violentar pessoas e direitos.

Em novembro de 1970, Jefferson Cardim, quando ia para o Chile trabalhar com Salvador Allende, acompanhado de seu filho mais novo e sobrinho, foi monitorado por policiais brasileiros comandados pelo Coronel da Cavalaria Nilo Caneppa, que acionou o órgão da Polícia Federal argentina e, sob o argumento de que havia “denúncias de que ele transportava droga”, foi parado, revistado, trazido à força para o Brasil, preso e torturado, tudo com o apoio do Itamaraty (Vol. I, Tomo I, p. 234).

oel Vasconcelos Santos, militante do PCdoB, foi preso próximo ao morro do Borel, no Rio de Janeiro, após uma “ronda policial” resolver pará-lo e revistá-lo por suspeitar tratar-se de um traficante de drogas. Desapareceu após ser levado para o DOI-CODI do Rio de Janeiro. (Vol. I, Tomo I, pg. 553).

Também em 1971, no festival de inverno de Ouro Preto, integrantes da Cia Teatral Living Theatre tiveram o local onde estavam hospedados invadido sob o pretexto de busca de drogas e mesmo sem nada ser encontrado todos foram presos e levados para Belo Horizonte (Vol. II, p. 346).

A guerra às drogas mata e tortura muito mais do que matou e torturou a ditadura militar, mas, infelizmente, ainda estamos distantes de uma comissão da verdade para avaliar os culpados desta atual intolerância, a intolerância da guerra às drogas. Enquanto isso, as drogas continuam subterfúgio para a prisão de pobres, manifestantes, subversivos, estudantes ou operários.

Talvez até pelo acirramento da guerra às drogas, pelo agravamento de um preconceito construído há mais ou menos um século, nem seja preciso mais reviver, como querem muitos, o período assassino da ditadura militar. Pode-se prender, torturar e matar sob a justificativa de que o preso tinha um “embrulho do mal” no bolso, não importa se o morto apenas saía de uma reunião política contrária ao sistema, pois, depois de morto, com a foto do embrulho ao lado, tudo se justifica.

A guerra às drogas é o subterfúgio para manter até os próprios agentes do Estado com medo, submissos à hierarquia e ao comando de um poder cada vez mais neurótico, corrupto e violento.

O Estado precisa de discricionariedade para reprimir não drogas, mas pessoas, e o subterfúgio, vazio como qualquer outro, no caso das drogas tornou-se tão vago a ponto de permitir, como já aconteceu, a prisão e a condenação de um morador de rua por porte de pinho sol e água sanitária.

Para justificar prisões, invasões de domicílio, manter os trabalhadores pobres das comunidades, da periferia, com medo, para isso continua servindo a guerra às drogas. A guerra às drogas é a ditadura viva e atuante nas ruas e periferias do Brasil.

*Luís Carlos Valois é juiz de direito no Amazonas, mestre e doutor em direito penal e criminologia pela USP, pós-doutorando em criminologia em Hamburgo – Alemanha, membro da Associação de Juízes para Democracia e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e porta-voz da Law Enforcement Against Prohibition – LEAP (Agentes da Lei contra a Proibição).

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#PraCegoVer: fotografia (de capa) de dois militares, um atrás do outro, portando fuzis apontados para baixo, estando o da frente com máscara de caveira e o outro com máscara preta, próximos a um poste de energia; ao fundo, desfocado, pode-se ver uma criança, vestindo uma camiseta amarela e azul, caminhando pela rua. Créditos da foto: Fernando Frazão – Agência Brasil.

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